Fora de época, Carnaval no pampa gaúcho movimenta economia
Cerca de 5 milhões de reais devem ser injetados na economia de Uruguaiana com chegada de turistas; desfiles contam com profissionais do Rio de Janeiro
Enquanto as escolas de samba de cidades prósperas como Porto Alegre e Caxias do Sul sofrem os efeitos da crise econômica que levou ao cancelamento dos desfiles deste ano, a cidade de Uruguaiana, no pampa gaúcho, na fronteira com a Argentina, prepara o seu Carnaval fora de época com desfiles de nove escolas nos dias 1, 2 e 3 de março.
Conhecida também pelos festivais de música nativista, culto à cultura gaúcha e, claro, o churrasco, a cidade do pampa também tem “samba no pé”. A chegada dos turistas a Uruguaiana já lotou os 1.600 leitos dos hotéis da cidade. Os visitantes devem injetar 5 milhões de reais na economia do município segundo a presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) de Uruguaiana, Luciane Lopes. Restam poucos ingressos e os valores variam de 80 reais (acesso individual) a 10.000 reais pelo camarote para grupos – o camarote é coberto e vale para as três noites.
A organização do evento foi terceirizada e custeada sem verba da prefeitura com a possibilidade de captação 1,128 milhão de reais por meio da Lei Rouanet. Além disso, carnavalescos, intérpretes, mestre-sala, porta-bandeira e dezesseis jurados do Rio de Janeiro participarão dos desfiles. Devem ser gerados 800 empregos temporários diretos e indiretos, sendo 150 dos postos no setor de comércio e serviços.
“São centenas de vagas nos barracões, envolvendo os carros-alegóricos e fantasias. Movimenta a economia e gera trabalho. A comunidade tem orgulho. As crianças aprendem o samba-enredo das escolas, conseguimos conquistar uma nova geração. Quem caminha pelo centro, escuta as pessoas discutindo sobre suas escolas favoritas, fazendo suas apostas. Uruguaiana está envolvida com a festa”, disse Luciane a VEJA.
A opinião é compartilhada por Severo Luzardo Filho, de 55 anos, conhecido em Uruguaiana como Tuca. Carnavalesco há quarenta anos, ele trocou o Rio Grande do Sul pelo Rio de Janeiro. Tuca está na elite do carnaval carioca como carnavalesco da escola União da Ilha do Governador, do grupo especial do Rio de Janeiro. Assim como seus pais, ele iniciou sua carreira na escola Os Rouxinóis, de Uruguaiana, que foi campeã em 2017.
“Em Uruguaiana há o amor das pessoas pelo Carnaval sem o estigma que Porto Alegre ainda tem. Em Uruguaiana, todas as camadas sociais são apaixonadas pela festa. Nesse período, as pessoas usam as camisetas com as bandeiras de suas escolas. Não tem esse discurso mentiroso de que Carnaval tira dinheiro da saúde e da educação. Além de ser um investimento em cadeia produtiva, é investimento em cultura. Atrai milhares de pessoas, tem excursão da Argentina e Uruguai, movimenta a economia e entra dinheiro na cidade, que tanto precisa”, disse o carnavalesco à reportagem.
Mesmo no Rio de Janeiro, Filho cuidou de todos os detalhes d’Os Rouxinóis com ajuda da tecnologia. “A equipe de Uruguaiana vai fazendo e vou controlando o resultado pela internet. Eles vão filmando os carros-alegóricos, me mostrando pelo celular. Os ajustes finais de iluminação, decoração, faço pessoalmente. Tudo tem meu olhar”, explica Tuca. Ele coordena 1.200 pessoas da escola e a bateria é composta por 30 argentinos, prova de que o Carnaval de Uruguaiana é “internacionalizado”.
“O Carnaval tem impacto positivo: deixa milhões de reais em três dias de festa em uma cidade de 130.000 habitantes, que fica ‘na ponta do Brasil’. É uma mágica, como o Festival de Parintins. A gente fica se perguntando como, no meio da selva amazônica, chegam os materiais, as fantasias. Assim como em Uruguaiana, é a paixão que impulsiona isso em uma cidade tão longínqua. Lamento discursos políticos pífios para não haver investimento. Sempre acreditei que fica um legado cultural a cada Carnaval”, disse em referência aos carnavais cancelados no Rio Grande do Sul.
O Carnaval de Uruguaiana remonta a 1883, quando a festa era promovida por pequenos grupos fantasiados pelas ruas. Mas foi na década de 1950 que o samba do Rio de Janeiro chegou à cidade. O ritmo veio junto com os militares destacados para o Sul do país após a Segunda Guerra Mundial. No ano seguinte, foi criada a primeira escola, a Filhos do Mar. Passados mais de cinquenta anos depois, o Carnaval passou a ocorrer “fora de época”, atraindo carnavalescos e profissionais do Rio de Janeiro. O “atraso” por uma questão judicial acabou se transformando em um formato de sucesso. A história do Carnaval da cidade foi contada em artigo de Ulisses Correa Duarte, doutor em antropologia pela Universidade federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), publicado na Revista Latino-americana de Estudos de Cultura da Universidade Federal Fluminense (UFF).
“Em poucos anos, o carnaval de Uruguaiana alcançou um novo patamar nos desfiles quanto aos aspectos plásticos e à atração de sambistas cariocas que tiveram grande repercussão nas suas apresentações no sambódromo”, escreveu Duarte.
O pesquisador inclusive cunhou de “migração carnavalesca” a contratação dos sambistas cariocas em Uruguaiana. De acordo com a pesquisa, porém, a migração também ocorre de Uruguaiana para outros lugares. Da cidade fronteiriça, mão de obra e artefatos muitas vezes chegam aos carnavais de Artigas (Uruguai), Paso de Los Libres (Argentina), Bella Unión (Uruguai) e cidades gaúchas como Santana do Livramento e Santa Maria.
Assim como o Carnaval fora deu época deu certo, a torcida é para que o modelo terceirizado, sem aporte direto da prefeitura, funcione. “A sociedade se reinventa e faz com que o Carnaval seja sempre vivo”, aposta o carnavalesco da escola Os Rouxinóis.
Até o momento, mais de 80% dos ingressos já foram vendidos. Os valores das opções disponíveis variam entre 80 reais o ingresso individual a 10.000, o camarote para diversas pessoas