Jair Bolsonaro nunca escondeu quem era: um deputado rastaquera, que passou a vida a oscilar entre o extremismo e o desequilíbrio, e que se destacava somente por sua agressividade, vulgaridade e excentricidade.
Mas em 2018, por motivos diversos, milhões de pessoas, que em condições normais jamais votariam em Bolsonaro, o elegeram. Nessa temerária decisão, pesou o cálculo de que, na Presidência, Bolsonaro não conseguiria ser o que sempre foi: os adultos na sala o manteriam sob controle. O governo seria ruim, possivelmente muito ruim, mas não a devastação que é.
A linha de frente para manter Bolsonaro dentro do tolerável seriam os militares, vistos como sérios, profissionais, competentes, honestos. Mas Heleno, Ramos e Braga Netto jogaram a seriedade e o profissionalismo no lixo e aderiram com entusiasmo ao golpismo e ao desmonte do Estado. Pazuello e o almirante Bento demonstraram que farda não garante competência. E meia dúzia (ou dúzia inteira) de coronéis no Ministério da Saúde esclareceu que não é preciso ser civil para ser corrupto.
Em vez de proteger o país do desequilibrado, os garbosos oficiais se uniram ao desequilibrado para destruir o país. É irônico que os primeiros a trair a pátria tenham sido justamente os que se consideram mais patriotas do que os demais brasileiros — há aí uma moral para todos os militares.
“Jair Bolsonaro não criou o pesadelo que estamos vivendo sozinho. Ele teve e tem a ajuda de muita gente”
Outra linha de defesa seria Paulo Guedes. O ministro não entregou o programa liberal e a gestão sensata que prometeu, mas sua escandalosa incompetência é o menor de seus defeitos. Grave mesmo é que Guedes aceita e legitima todas as barbaridades de Bolsonaro, e deixou de ser ministro para ser caixa de campanha. É irônico que quem se pretenda liberal escolha por missão reeleger o presidente mais antiliberal de nossa história — há aí uma moral para todos que se dizem liberais.
Queiroga, o médico que prometia recolocar o trem nos trilhos após a hecatombe de Pazuello, se metamorfoseou em monstro: desacreditou a vacina, suspendeu a vacinação, comeu pizza na calçada, mostrou o dedo para os manifestantes, endossou a vergonha na ONU, pegou o vírus e se tornou vetor da Covid-19. É irônico que um médico se torne símbolo da doença — há aí uma moral para todos os médicos.
O diplomata Carlos França, que prometia corrigir o rumo depois da calamidade de Ernesto Araújo, frequentou comício golpista, fez arminha com as mãos, participou do vexame na ONU.
Os exemplos acima são os mais surpreendentes, mas, a essa altura, qualquer um que esteja no governo ou o apoie é cúmplice na destruição do país. É o caso de sabujos como Pedro Guimarães, Lorenzoni e Tarcísio de Freitas; oportunistas como Ciro Nogueira, Fábio Faria ou Rogério Marinho; obscurantistas como Milton Ribeiro e Damares; ou técnicos como Tereza Cristina e Bruno Bianco. É o caso dos que se abstêm de fiscalizar o presidente, como Arthur Lira e Augusto Aras, e dos que o livram da responsabilidade, como Temer. E de muitos outros.
Jair Bolsonaro não criou o pesadelo que estamos vivendo sozinho. Ele teve e tem a ajuda de muita gente, em Brasília e fora dela.
São todos traidores da pátria.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2021, edição nº 2758