O agronegócio está em pé-de-guerra por causa de três questões do ENEM que teriam “cunho ideológico”. E exige que sejam anuladas.
Duas das questões são pura interpretação de texto, sem juízo de valor. E o material a que se referem é perfeitamente razoável. Não cabe qualquer reclamação.
A terceira questão (089) é diferente. Não só trata a opinião de um terceiro como fato, o que já seria inaceitável, como a “opinião” endossada é uma arenga anticapitalista e anti-agronegócio, 100% ideológica. É superficial, preconceituosa e equivocada.
O agro, com a ajuda da estatal Embrapa, transformou o Cerrado, antes pobre e abandonado, em uma região moderna e arrojada, e fez do Brasil o maior produtor de soja do mundo e um dos maiores de milho e de carne, sendo responsável por quase um quarto do PIB.
O crescimento acelerado do agro trouxe problemas e desafios que precisam ser discutidos, mas demonizar o que há de mais avançado e produtivo na economia brasileira não tem sentido. E há ainda o cruel dilema que a questão impõe ao aluno com opinião divergente: o que ele faz? Responde que a visão do autor está errada, prejudicando a si mesmo? Ou inventa uma resposta na qual não acredita, mas que a banca espera, violentando a si mesmo? É inacreditável que professores possam fazer isso com alunos.
O agro tem toda razão de reclamar. E o pedido de anulação não é estapafúrdio.
Não é a primeira vez que se vê uma questão vergonhosamente ideológica no ENEM. Questões assim, além de ilegítimas, abrem margem para a acusação de que a academia é “doutrinária”, argumento recorrente da direita, e alimentam o inferno bipolar que vivemos. Como não poderia deixar de ser, a questão abriu as portas do inferno. E do besteirol.
A educação está “absolutamente tomada por essa praga chamada marxismo cultural”, bradou um deputado. “A esquerda mais uma vez, estimula conflitos agrários dentro do Brasil”, gritou outra. “Tentam macular a imagem da agropecuária no Brasil estimulando e promovendo divisões dentro do setor”. E por aí vai.
A Frente Parlamentar do Agronegócio chegou a afirmar que vai convocar o ministro da Educação, Camilo Santana, para prestar esclarecimentos no Congresso, um procedimento autoritário, de intimidação, e sem sentido, já que o ministro não tem nem conhecimento nem ingerência na elaboração das questões.
O foco saiu da discussão sobre como aprimorar o exame e defender os interesses dos estudantes para se tornar mais uma batalha sangrenta na interminável e insuportável polarização nossa de cada dia.
Lamentável.
(Por Ricardo Rangel, em 08/11/2023)