8/1: Os aspectos fundamentais
A democracia resistiu e sobreviveu: é motivo para grande comemoração. Mas mal começamos a fazer o que é preciso para impedir que novos golpes sejam tentados

Desde a proclamação da República, o Brasil foi alvo de uma dúzia de golpes e tentativas de golpe.
Hoje faz um ano da mais recente tentativa. Eis seus aspectos fundamentais:
- Foi golpe. Existe um oceano de provas que deixam claro que os criminosos (dentre os quais havia grande quantidade de militares) que invadiram a Praça dos Três Poderes tinham por objetivo criar o caos e arrastar as Forças Armadas para o golpe. Afirmar que eram velhinhos, crianças e donas de casa que, coitados, se excederam, faz parte da narrativa golpista e pode ser entendido como apologia ao golpe.
- O governo falhou. Ocorrida a posse, as autoridades relaxaram, acharam que não existia mais perigo. Particularmente grave foi a manutenção de toda a equipe montada pelo bolsonarista-mor general Heleno no GSI, responsabilidade do mais ingênuo de todos, o ministro-general Gonçalves Dias. A nomeação do general Júlio César Arruda, excessivamente ligado a Bolsonaro, como comandante do Exército, foi outro grave equívoco.
Um aspecto que seria até pitoresco se não fosse grave é que Lula nem sequer tem telefone celular: para avisá-lo, seu fotógrafo ligou para o prefeito de Araraquara, para quem mandou vídeo da invasão; para dar ordens a seus auxiliares, como contou o ministro da Defesa, o presidente mandava recados por terceiros. - Houve participação da PM/DF e do GSI. A PM deliberadamente permitiu que os golpistas invadissem as sedes dos Poderes. O governador Ibaneis Rocha é culpado de, no mínimo, negligência culposa; do ex-secretário de Segurança (e ex-ministro de Bolsonaro), nem se fala. O GSI foi negligente, e tudo indica que a negligência foi deliberada.
- A reação do governo foi perfeita. Apesar dos erros preliminares, e com todas as dificuldades, o governo reagiu rápida e corretamente. Recusou a perigosíssima hipótese de GLO, decretou intervenção civil (rapidamente aprovada pelo Congresso), nomeou interventor alguém competente, Ricardo Cappelli, que sufocou o golpe em questão de horas. Flávio Dino soube resistir à provocação do comandante do Exército e evitou um confronto que poderia ser a gota d’água para levar as Forças Armadas para o golpe.
- O STF teve papel fundamental. No mesmo dia, Alexandre de Moraes, de Paris, afastou o governador Ibaneis Rocha do poder. O ministro voltou ao Brasil no dia seguinte e, no dia 10, determinou a prisão do secretário Anderson Torres e do comandante da PF, coronel Fábio Augusto. Alexandre colaborou intimamente com o governo para impedir que o movimento golpista se espalhasse por outras capitais.
- As Forças Armadas, como instituição, não aderiram ao golpe. Mas não são insuspeitas. Nos anos Bolsonaro, foram incontáveis as declarações e atos de oficiais-generais, da ativa e da reserva, em ameaça às instituições e contra a democracia (e nunca a favor); as Forças Armadas acobertaram os acampamentos golpistas.
O comandante do Exército, general Arruda, impediu o cumprimento de ordem judicial para desmontar os acampamentos, ameaçou o comandante da PM na frente no interventor Ricardo Cappelli e peitou o ministro da Justiça. Duas semanas depois, o general novamente insubordinou-se e recusou-se a cumprir ordem para revogar nomeação de Mauro Cid para o Batalhão de Ações de Comandos, em Goiânia (Arruda foi demitido por isso).
- Bolsonaro é o grande responsável. Jair Bolsonaro — que passou toda a vida atacando a democracia, defendendo a ditadura, tortura e golpe — passou todo o mandato descredibilizando as instituições e a imprensa, disseminando fake news sobre autoridades e sobre as urnas eletrônicas e cooptando as forças de segurança. Desde 2020, muitos analistas políticos alertavam que, caso derrotado, tentaria criar o caos para arrastar as Forças Armadas e as PMs para um golpe — e foi exatamente isso que fez.
O susto foi grande, mas a democracia resistiu e sobreviveu. É motivo para grande comemoração.
Mas há muito a fazer para impedir que novas tentativas surjam. E mal começamos a fazê-lo.
(Por Ricardo Rangel em 8/1/2024)