O encontro histórico de três lendas do samba: Cartola suave, Ismael solitário, Mano Décio oculto
Capa de VEJA reuniu os três bambas às vésperas do carnaval de 1975

Em 1975, VEJA retratou o retiro de três “reis sem coroa” do samba: Angenor de Oliveira, o Cartola, fundador e primeiro diretor de harmonia da Mangueira, cuja obra volta ao cartaz esta semana com mostra no Rio e o musical O mundo é um moinho em São Paulo. Ismael Silva, do Estácio de Sá, autor de Antonico e Se Você Jurar; e Mano Décio da Viola, do Império Serrano, compositor de Exaltação a Tiradentes e Heróis da liberdade. Para a reportagem de capa, os três posaram em território neutro, informava a Carta ao Leitor: um estúdio no Botafogo, onde, entre goles de cerveja, os três revelaram um “entendimento impecável” na crítica a escolas de samba e aos desfiles de carnaval. “Hoje eu não frequento nem ensaio”, queixava-se Cartola. Longe das quadras, porém, as três lendas vivas do samba atravessavam uma boa fase em meados dos anos 1970. Cartola e Mano Décio estreavam em disco, e Ismael Silva gravava o seu melhor álbum, após longo hiato.
Cartola suave – A VEJA, Cartola contava que ouvia muito Nelson Cavaquinho, Lupicínio Rodrigues e Chico Buarque, mas seu preferido era Dorival Caymmi. Que gostava de ler a poesia de Castro Alves e Guerra Junqueiro. Que sempre achou que seu nome era Agenor, em vez de Angenor, até providenciar a papelada para casar com Dona Zica, já sessentão. Que construiu sua própria casa, em seis meses, com um ajudante. Que lê jornal, mas não partitura. Que violão é o único instrumento que toca (“mas acho que mal”). Que trocara a cachaça pela cerveja. Que a operação no nariz “de couve flor” foi a realização de um velho sonho (“todo dia inchava de pus e doía cada vez mais”), e agora não sentia mais nada. Que Roberto Carlos, sim, era “uma grande atração” e merecia grandes contratos. Ele mesmo, não: “Não sou um grande artista nem nada demais”. Que ganhava uns 2500 cruzeiros (cerca de R$ 1.500, em valores atualizados pelo IPC-Fipe), quase a metade da soma como contínuo do Ministério da Indústria e do Comércio. E ia “levando a vida”.
Mano Décio oculto – Tendo dedicado a carreira aos sambas-enredos, Mano Décio era menos famoso fora das quadras que os demais bambas. Baiano de Santo Amaro da Purificação, foi vendedor de jornal e loteria, camelô, gráfico, engraxate – recordava-se, aliás, de ter polido os sapatos de Ismael Silva. Trabalhava havia 28 anos no cais do porto, ganhando cerca de 1500 cruzeiros (900 reais, pelo IPC-Fipe). Morava com a terceira mulher e três filhos. No tempo livre, divertia-se jogando cartas com os amigos no Grêmio Recreativo Cabelos Brancos, dedicado à cerveja e ao baralho… Autor de um número “incalculável” de sambas, e quatro enredos campeões do carnaval, dizia a VEJA que não gostava de ouvir música (“só fazer”). Mas não se furtou a comentar: “Rendo homenagens a Gilberto Alves, Jamelão e o grande defensor da música popular brasileira, Martinho da Vila. Gosto do estilo de Roberto Carlos, mas não tenho intimidade. O Caetano Veloso (seu conterrâneo), que eu vi na televisão, não entendo…”
Ismael Silva solitário – “Este é o Ismael Silva, o preto da alma branca!” Foi assim que Francisco Alves apresentou o parceiro durante uma apresentação nos anos 1930. Ao lembrar o episódio, “o rosto de Ismael carrega-se de sombras”, narrava a reportagem de VEJA:
Foi esta apresentação ‘despropositada’, segundo ele, o único momento que consegue alertá-lo para a espoliação de que foi vítima, tanto quanto outros sambistas, e da qual prefere não falar, por achar que nunca existiu espoliação alguma. Em 1935, embora também não goste de falar disso, rompeu-se enfim o estranho contrato Ismael-Chico Alves (o primeiro era obrigado a ceder músicas ao segundo, com exclusividade, mas nada impedia Chico de cantar outros autores) e o sambista se perdeu “num grande desgosto”, como confessou uma vez. Seguiu-se uma grande hibernação, por que “o boêmio de sangue procura qualquer motivo para se entregar à boemia”. De copo em copo e de samba em samba, a ressurreição de Ismael só se deu vinte anos depois, quando recomeçou a fazer shows e gravou um LP.
VEJA foi encontrar Ismael no Bar Arcadas, na Lapa, a 50 metros de sua residência de solteirão:
Aos 69 anos (fará 70 em setembro), magro, aprumado, usando às vezes o seu clássico e impecável terno de linho S-129, ele tem a cara da sua idade, onde, no entanto, um sorriso súbito e estranho opera um passe de mágica: quando ri, o velho Ismael fica vinte, trinta anos mais moço, e por alguns instantes parece de novo o sambista jovem e arrogante, únicos sinais que perduram numa velhice solitária e ressentida. E, apesar dos pesares, feliz. “Não consigo ficar triste. É esta a minha natureza”.
Ismael Silva morreu três anos depois, em 1978. Cartola, em 1980. Mano Décio, em 1984.