Demasiado humano: há 20 anos, Kasparov era esmagado por Deep Blue
Atormentado pela suspeita de que a IBM trapaceava, o campeão russo cometeu erros inexplicáveis e saiu derrotado do duelo com o supercomputador
Em 11 de maio de 1997, exatos vinte anos atrás, o enxadrista russo Garry Kasparov era destronado pelo Deep Blue, o supercomputador da IBM, ao final de uma tensa série de seis partidas em Nova York. Vitória da máquina sobre o homem? De certa forma, sim, claro (ainda que, por insistência da companhia, o duelo tenha sido travado sob as bandeirolas de EUA e Rússia). Mas não se deve esquecer que a mais alta inteligência artificial é, ao cabo, produto do engenho humano. E é preciso lembrar também que Kasparov, perturbado pela suspeita de que a IBM trapaceava, errou muito.
Em 1996, Kasparov havia disputado e vencido uma rodada amigável de jogos contra o Deep Blue na Filadélfia. Tomou um susto no começo, é verdade, perdendo a primeira partida, mas conseguiu recuperar-se rapidamente com três vitórias e dois empates. Ao final do encontro, confiante, o russo concedeu revanche. O time de cientistas da IBM aproveitou a chance para reprogramar completamente a máquina, assessorados por mestres do tabuleiro. Em 1997, estavam prontos para fazer história.
“Há uma sensação fortíssima de que o atual torneio é fundamental. Não apenas porque Kasparov pode perder, mas pelo fato de que, ao final das seis partidas, poderá surgir, pela primeira vez na história, um computador imbatível diante de um tabuleiro. E, uma vez posto, o rei mecânico do xadrez nunca mais será deposto”, reportava VEJA, uma semana antes. “Nicolau Copérnico tirou a Terra do centro do universo, Charles Darwin nos colocou na mesma família dos animais. De certa forma, já assimilamos esses sustos. A razão, porém, como está provado por um simples jogo de xadrez entre os melhores do mundo, é algo unicamente humano, irrepetível, alguma coisa que não se empresta ou ensina a nenhuma outra forma de vida baseada no carbono ou no silício. Esse privilégio vai durar para sempre? Talvez o computador da IBM, com suas duas torres negras de 1,4 tonelada que parecem o resultado do cruzamento da geladeira com o ar-condicionado, esteja prestes a retirar mais esse trunfo da espécie humana.”
O russo começou bem a série de 1997 e venceu o primeiro match. Mas um lance inexplicável da máquina, quase no fim, transtornou o campeão, como conta o estatístico Nate Silver em O Sinal e o Ruído. A estranha jogada foi atribuída por um dos pesquisadores a um bug: incapaz de se decidir entre tantas jogadas possíveis – 200 milhões de alternativas processadas por segundo -, o Deep Blue acabou movendo suas peças de forma errática. Kasparov venceu a partida, mas não cogitou que o lance pudesse ser fortuito, mas que se tratava de algum ardil, que ele simplesmente não pôde decifrar. O clima de camaradagem se dissipou rapidamente.
O segundo da série jogo foi ainda mais tenso e terminou bruscamente. Encurralado pelo Deep Blue, Kasparov desistiu e saiu atirando: ‘O que aconteceu ontem me trouxe à lembrança o gol de mão de Maradona contra a Inglaterra na Copa do Mundo de 1986. Maradona disse que o gol fora feito pela mão de Deus’, reportou VEJA. Horas depois, alertado por sua entourage, deu-se conta: havia entregado um jogo em uma situação que até enxadristas menos capazes conseguiriam conduzir ao empate.
Seguiram-se mais três partidas nervosas, três empates. ‘Ao final da quinta partida, Kasparov entrou quase aos gritos na sala de jogo e exigiu dos árbitros em tom ríspido que confiscassem e selassem com seu timbre os registros de todas as jogadas do computador’, narrou reportagem de VEJA. A suspeita de Kasparov: mestres enxadristas estariam ajudando o Deep Blue a tomar decisões – a empresa manteve tudo sob sigilo, e a sala onde instalara a máquina, sob estrita segurança.
No sexto jogo, o derradeiro, Kasparov cometeu mais um erro inconcebível para um supercampeão. Permitiu que Deep Blue avançasse com um de seus cavalos e o oferecesse em sacrifício, em troca de um peão. Na rápida ofensiva que se seguiu, o Deep Blue dominou completamente o tabuleiro, obrigando o russo a desistir, no 19º lance. Vitória do Deep Blue. Arrasado, Kasparov exigiu revanche, que nunca lhe foi concedida. Sabe como são essas máquinas…
“Sou como a Seleção Brasileira de Futebol. Se jogo bem, ganho”
Ninguém teve pena de Kasparov. Gênio precoce do xadrez, ele se tornara famoso pelos movimentos audazes no tabuleiro e a arrogância fora dele, em um meio que não é exatamente conhecido pela despretensão. O russo custou a dar algum crédito ao time da IBM, mas escapou à sina de tantos enxadristas obcecados que fazem do jogo milenar, tão rica metáfora da condição humana, um flerte com a loucura. O caso mais anedótico é o do mestre austríaco Wilhelm Steinitz, influente teórico do século XIX, que afirmou certa feita que disputara uma partida contra Deus (e O derrotara, claro), antes de ser internado como doente mental. O mais recente é o da lenda americana Bobby Fisher, que rivaliza com Kasparov nos rankings dos maiores jogadores da história. Após quebrar a hegemonia soviética anos 1970, abandonou os torneios, desapareceu por décadas e ressurgiu nos anos 2000 em defesa dos ataques terroristas de 11 de Setembro. Morreu aos 64 anos, em 2008, em um hospital da Islândia. Kasparov radicou-se nos EUA e hoje é um lúcido e ativo crítico de Vladimir Putin.
Em 2004, um ano antes de se aposentar, explicou a VEJA por que considera xadrez um jogo superior. “É o jogo mais inteligente. Demanda raciocínio sofisticado e não conta com técnicos, time nem sorte. O pôquer é complexo, mas, ainda assim, um jogador ruim pode vencer uma partida porque recebeu as melhores cartas. Num esporte de equipe, como o futebol, se o time vai bem, um Ronaldinho tem um ambiente favorável para brilhar e fazer gols. Já no xadrez, você está solitário do primeiro ao último lance. Se é derrotado, o fracasso é só seu”, disse.
Na conversa, falou também sobre as disputas com computadores. “A desvantagem do homem em relação à máquina é que o computador é psicologicamente preciso, perfeito. Não tem instabilidade, mau humor, irritação, dor de cabeça. Já a vantagem do homem sobre o computador é a flexibilidade. O computador nasce programado para olhar o jogo de um determinado jeito, com uma estratégia preestabelecida, amarrada. E não muda. Eu, não. Tenho a habilidade de refazer a estratégia, trocar minhas prioridades. A máquina é movida pela lógica do cálculo perfeito. O homem tem o poder de fazer julgamentos. Tenho certeza de que o melhor homem, no seu melhor dia, ainda bate a eficiência da máquina — e vai ser assim durante muito tempo. Quando digo ‘o melhor homem’, estou me referindo a não mais que quatro, cinco jogadores no mundo inteiro. Eu já provei ser um deles. Venci, mas fiquei exaurido, estraçalhado. Jogar me cansa cada vez mais.”
O russo também falou do gosto pelos holofotes e, imodesto, se pôs acima de todos os oponentes. “É bom ser uma celebridade. Você ganha dinheiro, come a melhor comida, fica nos melhores hotéis e, no meu caso, tem liberdade de expressão. Por outro lado, por uma questão de segurança, vivo como se houvesse um vidro me separando do resto da humanidade. Isso é angustiante. Fui ao Rio de Janeiro em 1996 e me disseram que era uma cidade perigosa. A coisa mais ousada que consegui fazer foi visitar um bufê self-service de sorvete. Outro problema do sucesso é que ele traz inimigos. Tenho vários. Quem está no topo tanto tempo como eu coleciona inimigos. A maioria das pessoas odeia quando você ganha. Mas que fique claro: não estou nem aí para os meus oponentes. Sei que, se jogo bem, ganho. Sou como a Seleção Brasileira de Futebol. No xadrez, não existe ninguém à minha altura.”