Betinho, Cármen Lúcia e a ‘Ação da Cidadania contra a Corrupção’
Reportagem de VEJA de 1993 narrou a vida do sociólogo e a campanha que uniu brasileiros da esquerda à direita no combate à fome
A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, fez um apelo nesta terça-feira para que a sociedade se inspire no sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, e promova uma nova edição da “Ação de Cidadania contra a Fome e a Miséria”, desta vez contra a corrupção. Para ela, seria uma forma de canalizar a indignação com a classe política em torno de uma iniciativa concreta. A ministra lembrou que ele sempre dizia que “tinha fome de humanidade”, enquanto hoje “temos fome de Justiça, de liberdade, e principalmente da segurança de sabermos que o Brasil pode ser muito melhor”, disse ela. Morto há 20 anos em 9 de agosto de 1997, Betinho e o seu projeto, que mobilizou todo o país, de norte a sul, da esquerda à direita, de empresários a sindicalistas, de religiosos a artistas, estamparam a capa da revista VEJA na edição 1320 de 23 de dezembro de 1993.
A reportagem de 26 páginas, intitulada de “Cara a cara com o Brasil”, narra a trajetória do sociólogo, que nasceu hemofílico, pegou tuberculose na adolescência e descobriu aos 50 anos que foi infectado pelo vírus HIV numa das cotidianas transfusões de sangue que fazia. “Como ele mesmo observa, sua vida havia sido uma experiência de risco. E se bruxas há, elas apontaram todas as vassouras contra ele.” A despeito das doenças e do aspecto frágil, Betinho aprendeu desde pequeno que “tinha de ganhar briga sem bater” e, de tanto “falar, argumentar, seduzir e convencer”, conseguiu o impossível ao unir o Brasil no começo dos anos 90, no período pós-ditadura militar, em prol do combate à fome no país.
O ativista criou a “mãe de todas as ONGs brasileiras”, conforme definiu a revista — o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), que por meio do cruzamento de dados de diferentes pesquisas chegou à conclusão de que o país tinha 32 milhões de miseráveis — “o número que virou o emblema da fome brasileira”.
Assim a iniciativa dele foi descrita pela reportagem: “A cada 30 anos um pedaço do Brasil parece se botar em marcha atrás de uma bandeira mobilizadora. Na campanha do ouro para o Bem de São Paulo, que lastreou o esforço do movimento armado de 1932 contra o governo do então presidente Getúlio Vargas, a mobilização foi ideológica e abençoada pelo clero — das 28 organizações comerciais e industriais que apoiavam a campanha, apenas quatro não pertenciam às classes conservadoras. Já na Campanha do Outro para o Bem do Brasil, de 1964, lançada com estardalhaço pelos Diários e Emissoras Associados em apoio ao golpe militar, o apelo era patriótico. As primeiras horas foram cintilantes: arrecadaram-se 316 quilos de ouro doados por 150.000 pessoas só em São Paulo, esperavam-se 3 toneladas em todo o Brasil. Sumiu o ouro e, mais de vinte anos depois, sumiu a ditadura. Decorrem outras três décadas e o país volta a ser mobilizado. Desta vez, em torno da cidadania, da ética democrática. Desta vez e pela primeira vez, buscando não excluir ninguém. É a Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, popularmente conhecida como Campanha contra a Fome, ou, simplesmente, a Campanha do Betinho”.
A “Campanha do Betinho” ostentava números significativos, conforme a reportagem, como 3.346 comitês espalhados pelos 27 Estados brasileiros. O projeto era quase uma unanimidade entre brasileiros de diferentes classes e ideologias. Para se ter uma ideia, o projeto foi divulgado em Brasília pelo então presidente do PT Luiz Inácio Lula da Silva, enquanto o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-Codi em São Paulo, recolhia donativos na Nossa Senhora do Lago, também na capital federal, descreve a revista. “A campanha veio no momento certo. Diferentes segmentos da sociedade começam a se reposicionar, com o encontro de setores que não tinham nenhum histórico de parcerias anteriores”, afirmou a antropóloga Leilah Landim.
E já que o coronel Ustra foi citado, vale lembrar as aventuras de Betinho fugindo da repressão durante a ditadura militar — ele integrou a Ação Popular (AP), que viria a ser massacrada pelo regime. Aos 30 anos, ele se refugiou na embaixada do México para escapar de uma ordem de prisão expedida contra ele. Depois, fugiu de lá em um plano arquitetado pelo seu amigo na época, o agora ministro da Secretaria-Geral da Presidência Wellington Moreira Franco. Este veio resgatá-lo em um carro que pifou no caminho – os dois tiveram que completar a fuga de táxi. “Desde aquela época Wellington já fazia tudo errado”, comentou o Betinho à época. Irmão do cartunista Henfil, que também foi perseguido, ele posteriormente acabou se exilando no Chile, onde se aproximou do hoje senador José Serra. Por lá, assessorou o presidente Salvador Allende, deposto e morto pelos militares em 1973.
À reportagem de VEJA, o poeta e letrista Aldir Blanc ainda contou por que incluiu Betinho na música “O Bêbado e o Equilibrista”, célebre na voz da cantora Elis Regina. “Meu Brasil/ que sonha com a volta do irmão do Henfil/ com tanta gente que partiu/ num rabo de foguete”, diz o verso sobre Betinho. “Numa noite de sábado, fui chamado à casa do João Bosco, que tinha uma música pronta para eu letrar em cima. Eu estava tomado de tristeza pela morte de Charles Chaplin e a letra foi saindo inteira. O bêbado, do título, foi uma espécie de auto-referência: naquela época eu bebia muito. Como a música do João tinha estrutura de samba-enredo, achei que a gente deveria fazer a anistia ser cantada sem tom de lágrima de desespero. O incrível é que Betinho se torna mesmo um pouco chapliniano: vagabundo, doido, genial, está tudo ali. Betinho tem a capacidade de lidar rindo com o que o perturba. Caras assim podem tudo. (…) Ele é mesmo um mistério. Trata a morte a pontapés”, relatou Blanc.
Apesar da proximidade com figurões de Brasília e do seu engajamento em causas políticas, o sociólogo nunca exerceu cargo eletivo. Foi, no entanto, como descreveu o empresário Emerson Kapáz, “a encarnação do que no fundo queremos ver no Estado”. “Betinho não foi eleito por ninguém. Mas poderia ser o sujeito oculto da pesquisa ‘83% dos brasileiros acreditaram que o Brasil é um país viável’. Sobrevivente teimoso de um formidável elenco de fatalidades pessoais, ele espelha de certa forma, a tenacidade com que o brasileiro comum vai vivendo a vida, pancada após pancada”, dizia o primeiro parágrafo da matéria.