A estreia de Verissimo em VEJA e o surgimento de um de seus personagens mais icônicos
De 1982 a 1989, escritor que completa 80 anos nesta segunda-feira assinou coluna em VEJA. Releia a primeira delas, 'Auto-entrevista'
O escritor Luis Fernando Verissimo, que hoje completa 80 anos, manteve uma coluna em VEJA de 1982 a 1989. O primeiro texto saiu em 15 de dezembro de 1982, no espaço ocupado até então por Millôr Fernandes. Meses depois, surgia um dos personagens mais icônicos da vasta galeria criada por Verissimo, a Velhinha de Taubaté, que acreditava em todos os governos (desde Getúlio) – e que o cronista ‘matou’ na esteira do mensalão.
Leia trecho de ‘Auto-entrevista’:
“És ciumento?
Nasci aqui na Bolívia mesmo. Nascer foi a melhor coisa que poderia ter me acontecido. Eu não seria o que sou hoje se não tivesse nascido. Acho que foi um parto normal. Perguntei para minha mãe mas ela insiste que não estava lá na ocasião. Desconfiei que alguma coisa errada comigo porque papai trazia os amigos para me ver, no berçário, mas apontava para outro bebê. Custei a falar. Durante dois ou três anos, apesar da insistência da família, só dizia meu nome, minha patente e meu número de série. Sou de Libra. Minha vida é regida por Saturno, Urano e, estranhamente, pelo maestro Isaac Karabtchevsky.
Já foi beijado?
Me considero um homem de esquerda. Tenho certeza que meus filhos ainda viverão sob o socialismo. Em Paris, às minhas custas. Eu não tinha entendido o termo “capitalismo selvagem” até que um representante do FMI desceu em Brasília, pediu que carregassem sua bagagem e um ministro da área econômica disse “Sim, bwana”. Não sei se o FMI vai interferir mesmo no país mas quando sua comitiva esteve no Rio um dos membros foi visto apontando para o Pão de Açúcar e perguntando: “O Cristo Redentor não ficaria melhor ali?” Não entendo por que uma nação inteira deva se submeter aos interesses dos banqueiros internacionais. Eles não são melhores que os banqueiros nacionais. Mas não me tomem por um esquerdista radical. Não sou nenhum Jorginho Guinle.”
Leia trecho de ‘A velhinha de Taubaté’:
“Não se sabe, exatamente, o seu endereço, mas tudo indica que seja em Taubaté. Outros detalhes – nome, estado civil, CIC – são desconhecidos. Sabe-se apenas que é uma velhinha, que mora em Taubaté e que passa boa parte do seu tempo numa cadeira de balanço assistindo ao Brasil pela televisão.
A velhinha de Taubaté é o último bastião da credulidade nacional. Ninguém acredita mais em nada nem em ninguém no país, mas a velhinha de Taubaté acredita. Se não fosse pela velhinha de Taubaté, o país já teria caído, não no abismo, mas na gandaia final, sem disfarces. Mantém-se uma fachada de respeitabilidade para benefício da velhinha de Taubaté. Tudo que acontece de aparentemente sério no país é, na verdade, uma grande encenação para a velhinha de Taubaté. O Carlos Átila, quando fala para as câmaras, está falando para a velhinha de Taubaté. Na comunidade de informação existe um código para a velhinha de Taubaté – VT, ou “Jiboia”, já que ela engole tudo – e é pensando nela que são preparados os comunicados oficiais para o público externo. O relatório final sobre o caso das bombas no Riocentro foi feito exclusivamente para a velhinha de Taubaté e teve êxito, pois ela foi a única pessoa do país que acreditou. No recente baile de Carnaval do Monte Líbano só não ficou todo mundo totalmente nu porque havia a possibilidade de a velhinha de Taubaté estar vendo pela televisão. Sempre que a animação ameaçava passar de um certo limite, ouvia-se o cochicho:
– Olha a velhinha. Olha a velhinha.”
Verissimo também já foi duas vezes retratado em reportagem de capa de VEJA. No mesmo ano de 1982, meses antes de estrear na revista, foi tratado como o “campeão do humor”. O escritor vinha do fenômeno editorial O Analista de Bagé, que vendera 35 edições em 8 meses, total de 132 mil exemplares, um dos quais foi parar nas mãos do ditador Emílio Garrastazu Médici, natural da mesma cidade do analista “mais ortodoxo que caixa de maizena”: “Li e gostei muito. Como filho de Bagé, não tenho restrições à imagem da minha terra no livro”, dizia, oito ano após deixar a presidência. A reportagem sustentava que Verissimo “distingue-se da maioria dos humoristas brasileiros precisamente por não ser contra nem a favor de muita coisa”. “É gaúcho, mas prefere lagosta a churrasco. É escritor, mas preenche duas fichas de hotel chamando-se de jornalista. É abissalmente cético. Considera-se socialista, mas logo ressalva: ‘Romântico’. Acha-se ‘marxista’, mas reconhece que ‘está cada vez mais difícil saber o que é isso’. Não gosta de ditaduras, mas torceu pela Argentina na guerra das Malvinas.”
Mais de 20 anos depois, Verissimo voltou à capa de VEJA como ‘o bem-amado’, o escritor mais lido do país. “Seja nas tirinhas desenhadas ou nas crônicas assinadas em jornais, que representam a maior fatia da sua produção, Verissimo sempre contou com dois trunfos: o humor e uma percepção muito fina da intimidade do brasileiro. Ele é capaz de radiografar a alma nacional como ninguém. Versátil, o escritor escreve sobre quase tudo: economia, gastronomia, futebol, cinema, viagens, música, literatura. Pratica aquilo que Manuel Bandeira chamou ‘puxa-puxa’. Ou seja, é capaz de arrancar um bom texto de qualquer miudeza”, dizia a reportagem. “A vida privada do brasileiro, contudo, é o seu forte – ou as comédias da vida privada, para dizer melhor. Os rituais do namoro e do casamento, o sexo, as infidelidades, o choque de gerações, tudo isso é um prato cheio para o escritor. Quanto ao humor de Verissimo, ele é de um tipo muito especial. Por mais incisivas que sejam, suas piadas nunca destilam raiva. Ele não procura o fígado do leitor nem professa um humor amargo, desiludido com a humanidade. Verissimo afirma que, à medida que envelhece, talvez esteja caminhando para um ceticismo terminal, daqueles que não dão desconto. Mas ainda não chegou lá.”