Um povo sem F, L e R e, pois, sem Fé, sem Lei e sem Rei
Muita gente nervosinha também com o comentário que fiz sobre a foto de nossos heróicos silvícolas atacando o pássaro de ferro — eu, como indiodescendente, orgulho-me da valentia de meus ancestrais, embora seja um tipo especial de ancestralidade porque contemporânea, entendem?… Relaxem, crianças nervosas. Também gostei de ver que os meus avós culturais estavam pintados […]
Muita gente nervosinha também com o comentário que fiz sobre a foto de nossos heróicos silvícolas atacando o pássaro de ferro — eu, como indiodescendente, orgulho-me da valentia de meus ancestrais, embora seja um tipo especial de ancestralidade porque contemporânea, entendem?…
Relaxem, crianças nervosas. Também gostei de ver que os meus avós culturais estavam pintados para a guerra — quer dizer: suponho. Ora, o pajé, depois de bater o pé no chão algumas vezes para acordar o espírito da mata, foi advertido por esse ente — ou teria sido por Anhangá? — que o Grande Pássaro de Ferro sobrevoaria, naquele dia, a aldeia. Então eles se pintaram e começaram a cantar em línguas estranhas. Um católico reacionário como eu diria ser manifestação do Espírito Santo, a glossolalia. Mas não é, não. Deve ser mais uma língua sem F, sem L e sem R, o que os impede de ter fé, lei e rei, como escreveu Pero de Magalhães Gândavo no Tratado da Terra do Brasil, em 1573.
A foto, que lembra, assim, aquelas coisas de O Cruzeiro, remete àquele tratado, que é divertidíssimo (se quiserem, a íntegra está aqui). Revejam as imagens e leiam isto:
Estes indios sãs mui belicosos e têm sempre grandes guerras huns contra os outros; nunca se acha nelles paz nem he possivel haver entrelles amizade; porque humas nações pelejão contra outras e matão-se muitos delles, e assi vai crecendo o odio cada vez mais e ficão imigos verdadeiros perpetuamente. As armas com que pelejão são arcos e frechas; a cousa que apontarem não na errão, são mui certos com esta arma e mui temidos na guerra, andão sempre nella exercitados. E são mui inclinados a pelejar, e mui valentes e esforçados contra seus adversarios, e assi parece cousa estranha ver dous, tres mil homens nús duma parte e doutra com grandes assobios e grita frechando huns aos outros; e emquanto dura esta peleja nunca estão com os corpos quedos meneando-se duma parte pera outra com muita ligeireza pera que não possão apontar nem fazer tiro em pessoa certa; algumas velhas costumão apanhar-lhes as frechas pelo chão e servi-los emquanto pelejão. Gente he esta mui atrevida e que teme muito pouco a morte e quando vão á guerra sempre lhes parece que têm certa a victoria e que nenhum de sua companhia hade morrer. E quando partem dizem, vamos matar: sem mais consideracão, e não cuidão que tambem podem ser vencidos. Não dão vida a nenhum cativo, todos matão e comem, emfim que suas guerras são mui perigosas, e devem-se ter em muita conta porque huma das cousas que desbaratou muitos portuguezes foi a pouca estima em que tinhão a guerra dos indios, e o pouco caso que fazião delles, e assi morrerão muitos miseravelmente por não se aperceberem como convinha; destes houve muitas mortes desastradas: e isto acontece cada passo nestas partes.