Um editorial da Folha, o plebiscito e elites kerenskianas e kerenskiáveis
A Folha de S.Paulo fez um editorial, na edição desta sexta, irrefletido, para dizer o mínimo, e perigoso se pensarmos nas conseqüências. Trato dele trecho a trecho. Seguem o texto do jornal em vermelho e as minhas observações em azul: A Idéia de ampliar meios para solicitar plebiscitos e referendos ao Congresso, se for depurada […]
A Idéia de ampliar meios para solicitar plebiscitos e referendos ao Congresso, se for depurada de exageros, merece apoio.
Vamos ver os argumentos. O arsênico, depurado de exageros, é remédio. A afirmação é genérica demais.
Ano sim, ano não, todos os eleitores brasileiros são convocados às urnas. No ano que vem, escolherão prefeitos e vereadores; em 2010, votarão para os cargos estaduais e federais. Trata-se de uma rotina democrática que propicia a realização de consultas populares acerca de temas diversos. Apesar disso, plebiscitos e referendos continuam sendo raros 18 anos depois da promulgação da Carta de 1988.
O pensamento é torto. Não cabe o raciocínio adversativo. As eleições são instrumentos da democracia representativa. As outras formas de consulta, da democracia direta.
Como informou Josias de Souza ontem nesta Folha, o governo federal incorporou a sua proposta de reforma política um dispositivo destinado a ampliar consultas diretas aos eleitores. A idéia tem origem na Ordem dos Advogados do Brasil, sob o patrocínio do jurista Fábio Konder Comparato, entre outros. A tentativa anterior de implantá-la, por meio do projeto 4.718 (de 2004), terminou engavetada, no mês passado, pela Câmara.
A referência a Fábio Konder Comparato apenas como jurista é um favor à desinformação. Ele é também um militante petista.
O cerne da proposta da OAB reside em criar uma alternativa à mão única hoje existente para solicitar ao Congresso que examine a realização de um plebiscito ou um referendo. A lei 9.709 (de 1998), ao regular os três primeiros incisos (plebiscito, referendo e iniciativa popular) do art. 14 da Constituição, reserva apenas ao Legislativo federal -pela requisição de um terço dos integrantes da Câmara ou do Senado- a iniciativa de protocolar tais propostas de consulta.
Há um erro de avaliação grave aí: quando se fala em “mão única”, é preciso saber qual é a “outra” mão. É o Executivo? Mas o Executivo não existe para propor leis. É o “povo”? Segundo a democracia representativa, os parlamentares o “representam”. Ou não?
A idéia, agora encampada pelo Planalto, é permitir que também os chamados projetos de iniciativa popular possam solicitar que os congressistas decidam sobre a realização de plebiscitos e referendos. Esses projetos de lei precisam do endosso de pelo menos 1% do eleitorado brasileiro (cerca de 1,2 milhão de assinaturas), distribuído por cinco Estados. Entram com prioridade na pauta do Congresso.
A maioria das chamadas “entidades da sociedade civil” e das ONGs não passa de aparelhos da esquerda. É um fato. Não sou eu que quero que as coisas sejam assim. Elas são assim. Quem sabe, com o plebiscito, a “direita” também aprenda a se organizar. Duvido um pouco. A maioria das pessoas que entram nessa categoria — ao menos segundo os olhos da esquerda — é constituída de indivíduos que estão saudavelmente ocupados em cuidar da própria vida, lutando para garantir o sustento de sua família e algum futuro para seus filhos. É preciso ser um desocupado profissional, no que a esquerda tem larga experiência, para se dedicar a colher “assinaturas” disso e daquilo.
É óbvio que os aparelhos já instalados hoje, financiados com o dinheiro do trabalhador ou com o dinheiro público — CUT e MST, para citar um exemplo de cada caso —, levam enorme vantagem. Que dificuldade teria a central sindical petista para colher 1,2 milhão de assinaturas seja lá para o que for? Nenhuma.
Note-se que a atribuição de aprovar ou rejeitar a proposta de consulta continuaria -como reza o inciso XV do art. 49 da Carta- de competência exclusiva dos legisladores federais.Aqui está o cerne da ingenuidade e da irreflexão do texto. Hugo Chávez não instaurou uma ditadura na Venezuela desrespeitando a “consulta democrática”. Aliás, Clóvis Rossi, um articulista da Folha, indagou mais de uma vez por que tantos criticavam o presidente venezuelano se ele sempre consultou o povo. A história respondeu a Rossi. A esquerda contemporânea abriu mão, é óbvio, do golpismo armado.Ignora a Folha de S. Paulo que Lula tem hoje uma folgadíssima maioria no Congresso? Ignora — acho que não, porque o próprio jornal o noticia — como é constituída essa maioria? O fato de a consulta ter de contar com o assentimento do Parlamento não impede que as tais consultas populares evoluam para o “democratismo” e, daí, para uma forma velada de autoritarismo.A essência de um Parlamento, por mais distorções que tenha, é representar a média das opiniões do país — incluindo também as daqueles que não são profissionais de causas: a larga maioria da população, diga-se. O instrumento que se defende faz com que o Congresso se torne quase um refém de MINORIAS organizadas.
Esse é o aspecto que torna bastante razoável o pleito da OAB, posto que aumentaria o poder de pressão popular no tema dos plebiscitos sem, no entanto, açambarcar prerrogativas que jamais poderão deixar de ser do Congresso. A fim de que não paire nenhuma dúvida a esse respeito, será necessário retirar do projeto 4.718/04 alguns exageros -caso do item que obriga qualquer alteração nas regras eleitorais a ser referendada em voto direto pela população.
Sei, a Folha acha que se pode flertar com meio democratismo, só um pouquinho, mas não muito. Sou tentado, claro, a adotar o plebiscito. Eu adoraria uma votação direta propondo, por exemplo:
– a revogação da CPMF;
– a prisão perpétua;
– O fim de qualquer progressão da pena ou do livramento condicional de bandido;
– cadeia para quem invade propriedade privada
Qual é a chance, na opinião de vocês, de que a população seja chamada a opinar sobre assuntos como esses? Nenhuma. E a razão é simples. O resultado é mais do que conhecido. E não interessa ao establishment supostamente progressista que dá as cartas na política brasileira. As alegações seriam as mais diversas, todas elas definidas numa regulamentação que, claro, não seria submetida a plebiscito: “Ah, consulta sobre matéria tributária não pode”; “Consulta sobre cláusula pétrea não pode”…
Cabe lembrar, ainda, que tal ampliação nas formas de solicitar plebiscitos poderia ser utilizada pelo presidente de turno como um meio de coagir o Congresso e ensaiar alguma aventura cesarista. Obter um milhão de assinaturas a favor de um plebiscito para acabar com os limites à reeleição, por exemplo, não seria algo difícil.
É mesmo? Então vamos ver o que jornal nos oferece como garantia.
É preciso, porém, dar um crédito de confiança às instituições democráticas brasileiras. Mostram-se amadurecidas o bastante para deter eventuais tentativas de manipular plebiscitos a fim de impor uma ditadura sob fachada democrática.
Ah, entendi. A gente primeiro abre as portas para os bárbaros e depois conta com a possibilidade de que cada homem cumpra o seu dever.
PS: Enquanto caminhava ontem, um tanto esbaforido (como é chato fazer exercício, santo Deus!), debatia esse assunto com um amigo. Ele estava me pedindo que ponderasse um tanto: “Reinaldo, você tem alguma dúvida de que a população pensa mais parecido com a gente do que com ‘eles’”? “Eles”, bem entendido, são “eles”, vocês sabem quem… Não, eu não tenho. O problema é que o tema já vem com um vício de origem. E os argumentos, como se vê, são muito fracos.
Mas não fechei questão. Pretendo pensar um pouco mais a respeito. Se o plebiscito nos permitir votar sobre tudo — mas tudo mesmo! — talvez eu tope. E vocês estarão todos convocados. A nossa primeira tarefa será montar uma banquinha e colher assinaturas contra a CPMF. Vamos ver quantos homens honestos se faz um plebiscito.
PS2 – Quando vocês tiverem algum tempo, leiam um pouco sobre a Revolução Russa. De novo: não é para fazer paralelos com a situação que vivemos, mas aprender a identificar posturas. Os “liberais” brasileiros são dotados da idiotia característica de um Kerenski, que contava com os bolcheviques para derrubar o czar na certeza de que viria depois a democracia. Deu no que deu. Ah, e vocês nem precisam ler um historiador liberal. Os próprios revolucionários, stalinistas e trotskistas, sempre mangaram de Kerenski, tratando-o como um idiota (é o que era), que só abriu caminho para o golpe bolchevique. Parte da Dona Zelite (a não petista) no Brasil é kerenskiana. A outra parte é kerenskiável.