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Reinaldo Azevedo

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Blog do jornalista Reinaldo Azevedo: política, governo, PT, imprensa e cultura

Um desagravo à Anjelica Huston de “Os Vivos e Os Mortos”

Queridos, Compreendo que muitos de vocês tenham ficado bravos de eu ter chamado Gerald Thomas de Mortícia Addams. É juta a solidariedade com Anjelica Huston. Vocês se lembram? Já fiz a ela aqui uma homenagem. No dia 21 de julho de 2007, às vésperas de uma viagem, publiquei o post abaixo. Reitero o convite para […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 5 jun 2024, 23h12 - Publicado em 25 fev 2008, 22h29
[youtube=https://www.youtube.com/watch?v=I1CP5Lz2iHE&w=425&h=355]
Queridos,

Compreendo que muitos de vocês tenham ficado bravos de eu ter chamado Gerald Thomas de Mortícia Addams. É juta a solidariedade com Anjelica Huston. Vocês se lembram? Já fiz a ela aqui uma homenagem. No dia 21 de julho de 2007, às vésperas de uma viagem, publiquei o post abaixo. Reitero o convite para que vocês vejam o filme Os Vivos e Os Mortos, uma obra-prima de John Huston, um verdadeiro artista, que não mostrava a bunda para ninguém.
Releiam o post.
*
(…)

Há muitos anos, nem sei quantos, li A Morte de Um Apicultor, do sueco Lars Gustafsson. Trata-se de um homem comum, pobre (pobre sueco), um tipo vulgar, precocemente envelhecido, que descobre que vai morrer. A obra passa a ouvir seu fluxo de consciência, reminiscências, mesquinharias de uma vida banal. Uma sensação — muito sueca? — de que nada à volta acontece ou vai acontecer.
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Tudo se volta para paisagens íntimas, mas também sem grandes anseios. Um livro, enfim, que não poderia ser escrito no Brasil. Aqui, 300 pessoas morrem numa pira macabra numa terça, provocada por um acidente aéreo, e, na sexta, as autoridades responsáveis pelo setor recebem a medalha Santos Dumont: por seu “Mérito Aeronáutico”. O Brasil está proibido de ter uma vida banal. E isso não é bom. Aqui, o pobre apicultor teria de arrastar seu tumor em alguma fila imunda, (mal) atendido por burocratas preguiçosos e sindicalizados. Essa gente moralmente miserável quer nos proibir de ter uma alma, de cultivar nossas intimidades, de guardar nossas pequenas coisas ridículas, que só a nós mesmos interessam.

Se querem saber melhor do que falo, procurem na locadora — os que não viram — o filme Os Vivos e Os Mortos (The Dead), de John Huston, baseado num dos contos (Os Mortos) de Os Dublinenses, de Joyce. Anjelica Huston (Gretta Conroy) e Donal McCann (Gabriel Conroy) têm uma atuação primorosa. É o meu filme predileto. Tudo acontece na ceia do Dia de Reis, 6 de janeiro. Ali se entrelaçam afetividade, pudor familiar, memória, afetos — tudo o que torna particular a vida de cada homem. Prestem atenção ao momento em que a câmera passeia pelo quarto das tias velhas, as irmãs Morgan: Julia (Cathleen Delany) e Kate (Helena Carroll), também soberbas. Trata-se de uma cena devastadoramente delicada.

Uma música — The Lass of Aughrim — evoca em Gretta um amor da adolescência, e o marido, Gabriel, se dá conta de que ele tem um rival, o passado dela, que não tem como ser vencido. A cena que consegui no Youtube é o exato momento em que Joyce escreve estas palavras: “He asked himself what is a woman standing on the stairs in the shadow, listening to distant music, a symbol of. If he were a painter he would paint her in that attitude.” E temos uma cena que é, de fato, uma pintura. Ousaria dizer que é de uma casta sensualidade. Huston, já à beira do fim, faz uma obra monumental. A cena final em que a neve se transforma numa personagem é rara. Até porque, mais uma vez, transforma o livro em cinema. O diretor morreu em 1987, ano de lançamento de Os Mortos. Foi sua última ironia poética. Eis a letra da música:

If you’ll be the lass of Aughrim
As I am taking you mean to be
Tell me the first token
That passed between you and me
O don’t you remember
That night on yon lean hill
When we both met together
Which I am sorry now to tell
The rain falls on my yellow locks
And the dew it wets my skin;
My babe lies cold within my arms;
Lord Gregory, let me in

Assim termina o conto, assim termina o filme:

“Yes, the newspapers were right: snow was general all over Ireland. it was falling on every part of the dark central plain, on the treeless hills, falling softly upon the Bog of Allen and, farther westward, softly falling into the dark mutinous Shannon waves. It was falling, too, upon every part of the lonely churchyard on the hill where Michael Furey lay buried. It lay thickly drifted on the crooked crosses and headstones, on the spears of the little gate, on the barren thorns. His soul swooned slowly as he heard the snow falling faintly through the universe and faintly falling, like the descent of their last end, upon all the living and the dead. ”

E é também nesse filme magistral que o Sr. Grace declama parte da letra de uma canção irlandesa do século 18, chamada “Donal Og” (Jovem Donald). É uma versão cortada da tradução de Lady Augustus Gregory. Seguem o trecho que está no filme (mas não no livro), uma tradução em português e a íntegra da versão de Lady Augustus.

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It is late last night the dog was speaking of you
The snipe was speaking of you in her deep marsh.
It is you are that lonely bird throughout the woods;
And that you may be without a mate until you find me.

You promised me and you said a lie to me,
That you would be before me where the sheep are flocked;
I gave a whistle and three hundred cries to you
And I found nothing there but a bleating lamb.

You promised me a thing that is hard for you,
A ship of gold under a silver mast,
Twelve towns and a market in all of them,
And a fine white court by the side of the sea.

You promised me a thing that is not possible,
That you would give me gloves of the skin of a fish;
That you would give me shoes of the skin of a bird,
And the suit of the dearest silk in Ireland.

(…)

My mother told me, not to be talking with you today
or tomorrow, or on the Sunday.
It was a bad time she took for telling me that,
It was shutting the door after the house was robbed.

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(…)

You have taken the east from me, you have taken the west from me,
You have taken what is before me and what is behind me;
You have taken the moon, You have taken the sun from me,
And my fear is great that you have taken God from me.

*

Era tarde a noite passada. O cão falava de você.
O pássaro cantava no pântano, falava de você.
Você é o pássaro solitário na floresta.
Que você fique sem companhia até achar-me.

Você prometeu e mentiu. Disse que estaria junto a mim
Quando os carneiros fossem arrebanhados.
Eu assoviei e gritei cem vezes
E não achei nada lá, a não ser uma ovelha balindo.

Prometeu-me algo difícil:
Um navio de ouro sob um mastro prateado,
Doze cidades e um mercado em todas elas
E uma branca e bela praça à beira mar,

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Você prometeu algo impossível:
Que me daria luvas de pele de peixe
E sapatos de pele de ave.
E roupa da melhor seda da Irlanda.

Minha mãe disse para eu não falar com você.
Nem hoje, nem amanhã nem Domingo.
Foi um mau momento para dizer-me isso.
Como trancar a porta depois da casa arrombada.

Você tirou o Leste de mim, tirou o Oeste de mim,
Tirou o que existe à minha frente, tirou o que há atrás,
Tirou a lua, tirou o sol de mim,
E o meu medo é grande. Você tirou Deus de mim.

Íntegra da versão em inglês (no filme, foram suprimidas as estrofes em azul):

It is late last night the dog was speaking of you;
the snipe was speaking of you in her deep marsh.
It is you are the lonely bird through the woods;
and that you may be without a mate until you find me.

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You promised me, and you said a lie to me,
that you would be before me where the sheep are flocked;
I gave a whistle and three hundred cries to you,
and I found nothing there but a bleating lamb.

You promised me a thing that was hard for you,
a ship of gold under a silver mast;
twelve towns with a market in all of them,
and a fine white court by the side of the sea.

You promised me a thing that is not possible,
that you would give me gloves of the skin of a fish;
that you would give me shoes of the skin of a bird;
and a suit of the dearest silk in Ireland.

When I go by myself to the Well of Loneliness,
I sit down and I go through my trouble;
when I see the world and do not see my boy,
he that has an amber shade in his hair.

It was on that Sunday I gave my love to you;
the Sunday that is last before Easter Sunday.
And myself on my knees reading the Passion;
and my two eyes giving love to you for ever.

My mother said to me not to be talking with you today,
or tomorrow, or on the Sunday;
it was a bad time she took for telling me that;
it was shutting the door after the house was robbed.

My heart is as black as the blackness of the sloe,
or as the black coal that is on the smith’s forge;
or as the sole of a shoe left in white halls;
it was you that put that darkness over my life.

You have taken the east from me; you have taken the west from me;
you have taken what is before me and what is behind me;
you have taken the moon, you have taken the sun from me;
and my fear is great that you have taken God from me!

Só isto, de fato, tem importância: a nossa individualidade, a nossa vida privada, a nossa família, os nossos amores, os nossos amigos, a nossa memória, a nossa lenda pessoal, os objetos dos quais nos tornamos íntimos — sim: os nossos leitores! Tudo isso que um país coalhado de canalhas, de idiotas, de incompetentes, de truculentos, de “utopistas” da desgraça, de demiurgos matusquelas, de messiânicos chinfrins, insiste em nos roubar. Tudo isso que foi roubado daquelas 300 famílias, vitimadas pelos medalhados prepotentes.

Vejam Os Vivos e Os Mortos. Resistam à pulhice dominante com a afirmação da individualidade, neste país de anões morais puxa-sacos, sempre dispostos a servir de bobos da corte. Deixem aqui as suas impressões. Esta é uma das formas que temos de resistir ao príncipe das trevas, ao rei do Tártaro.

Temos a tradição: os nossos mortos. Temos o presente e o futuro: os nossos vivos.

Clique na imagem acima para ver uma das mais belas cenas do cinema em todos os tempos. Se tiver alguma dificuldade, o endereço é este.
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