Tio rei vai ao cinema e implora: “Gente, vamos envelhecer”
Minha filha mais nova, de 11 anos, quis assistir ontem ao filme Antes de Partir (The Bucket List), com Morgan Freeman e Jack Nicholson, dirigido por Rob Reiner. “Pai, eu acho que vou chorar muito”. Falo já a respeito. A questão agora é outra — ou, no fundo, é a mesma. É preciso que lancemos […]
É preciso que lancemos uma campanha de alcance mundial: “Vamos aprender a envelhecer”. Ou ainda: “Envelhecer é bom”. Ou sei lá: “Dê-se o direito de envelhecer”. Como vêem, sou um desastre de marketing. Mas o fato é que está cada vez mais difícil encontrar pessoas de 40 anos com… 40 anos! De 50 com 50! De 46, como eu, com… 46! A maioria quer ser adolescente, pouco importa o tempo vivido. Estupidamente adolescente. E com tudo o que a adolescência pode ter de intolerância, ignorância, falta de sensibilidade, de informação e de respeito aos direitos do outro. O que os adolescentes têm de bom? Ora, a juventude, é claro. É preciso que a natureza tenha sido muito severa para que não exibam um tanto de graça.
Respondendo ao velho poeta Castilho, em frase célebre já aqui transcrita muitas vezes, o jovem Antero de Quental mandou bala: “A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança”. É isso. Talvez eu nem concorde inteiramente com ele. A futilidade num velho consegue desgostar-me MAIS do que a gravidade numa criança (e isso vale também para o post abaixo). Tá bom, queridos, ao caso. O evento é banal. Mas todos já passaram por algo parecido, aposto.
Antes do filme, água, docinho, pipoca… Lá vou eu para a fila. À minha frente, um senhor certamente mais velho do que eu decidiu comportar-se como um garoto que estivesse fazendo graça para a sua turma, para horror e constrangimento das suas duas filhas adolescentes. Queria negociar os “combos”:
“Em vez da pipoca, podem ser dois chocolate e um Mentos?” Por que ele não comprava, então, de cara, aquilo que queria? Não sei.
“Pode ser suco em lugar de refrigerante?”
“É suco de quê? Posso experimentar um golinho do de uva?”
“Ah, mas me falaram que o de limão é bom. Deixe eu provar?”
“Essa bala é dietética? Deixe eu dar uma olhada?”
E o cretino pegava os doces na mão, mas a hipermetropia o impedia de ler de perto, e as letras miúdas o impediam de ler de longe. E a falta de decoro o impedia de fazer logo a sua compra e desaparecer. De sorte que havia um estúpido à minha frente, beirando os 50 anos, comportando-se como se tivesse 14, mas certamente obrigado a regular a taxa de açúcar no sangue, lutando já contra a vista cansada. Entre uma indagação e outra, ele dirigia gracejos notavelmente imbecis à moça do caixa, que, um tanto incrédula (“quem é esse?”), um tanto, quem sabe?, vingativa (“vocês são brancos, que se entendam”), ia burocraticamente lhe fazendo as vontades.
“Pai, você já esta exagerando”, ensaiou uma de suas filhas. Mas ele não se deu por achado. “Que isso, Gi?” Adolescentes adoram apelidos monossilábicos. Olhei o tipo: devia usar uma bota de cano alto, sei lá, porque o salto me pareceu demasiado para um sapato. Um lado da camisa dentro da calça, o outro fora, numa displicência diligentemente arranjada, e o arranjo permitia que se visse o jeans afofado no traseiro descarnado, com os fundilhos baixos — poderia ser pior, é claro, e, nesse caso, ele nos ameaçaria com o elástico da sua Zorba. Pensei nisso na fila e fiquei meio enjoado.
Já estava ali, quando olhei no relógio, havia 12 minutos. A fila ao lado, gigantesca. A que se formava atrás de mim, idem. Mas e ele com isso? E ele com os outros? E ele com o outro? Divertia-se competindo, pensei cá com os meus botões, com os rapazes que lutam para chamar a atenção de suas filhas. Era o pai-amigão, o-que-dança-em-festa-de-adolescente, o que não permite que se realize o bom ciclo que faz a civilização: jovens transgridem; adultos põem limites — se preciso, reprimem.
A paciência não chega a ser a mais vistosa das minhas virtudes. A Reinaldinha mais velha, que me acompanhava, dizia baixinho: “Calma!” Também ela não queria ali o início de uma briga de rua. Santo Deus! Tudo o que os adolescentes esperam é que seus pais passem desapercebidos. Eu juro: suas meninas olhavam para mim implorando compreensão, nervosas e solidárias. Finalmente ele se foi. Quis o destino que eu o visse de novo quando estava na fila do caixa do estacionamento. Parecia voltar para o shopping. Tive tempo de ouvir uma de suas filhas:
“Não te falei, pai, que o carro tava no andar de cima?”
O filme
Feito para chorar — no que é incrivelmente bem-sucedido. Minha filha de 13 tende a ironizar tudo o que é feito para emocionar. A outra se acaba em lágrimas… Dois senhores com câncer se conhecem num hospital. Um é negro, mecânico, classe média, generoso e cheio de tiradas filosóficas de manual. O outro é branco, milionário, arrogante e cheio de tiradas filosóficas de manual dos brancos, milionários e arrogantes. Conversa vai, conversa vem, decidem fazer uma lista, a “bucket list”, do que poderiam viver “antes de bater as botas” (e este deveria ser o nome do “dramédia”, não essa escolha pomposa: “Antes de Partir”).
Parafraseando Umberto Eco, um clichê irrita; cem deles podem até comover. E é o que acaba acontecendo. Não há um miserável motivo racional para o filme fazer tanto sucesso — sim, Nicholson e Freeman ficam bem fazendo qualquer porcaria, como é o caso. É que todos buscamos maneiras de driblar a morte. Se pensamos no nosso próprio fim, imaginamos algo decoroso, como se o produto de nossa vida pudesse ser uma coleção de relíquias morais. As grandezas humanas foram conquistadas assim. E essa ambição também nos torna dignos de pena. Lembrando Lucrécio, estivéssemos tão certos da imortalidade de nossa alma, não deploraríamos tanto a morte.
Mesmo um filme ruim, com laivos de misoginia — e nem quero saber se voluntários ou não, mas o fato é que sou “mulherista” —, acaba se salvando porque fala com certa graça do tema proibido no nosso tempo: o fim. A melhor seqüência que o cinema produziu a respeito está em Os Vivos e Os Mortos, de John Huston, quando a câmera passeia pelo quarto das tias velhinhas, numa Irlanda coberta de neve. Mas John Huston não é para quem anda com os fundilhos da calça pelos joelhos.