Soljenítsin, a alma da velha e eterna Rússia
Por Gilles Lapouge, no Estadao:Corria o ano de 1975 quando conheci Alexander Soljenítsin, o escritor russo morto há uma semana. Eu já havia lido Um Dia na Vida de Ivan Denisovich, obra-prima que nos mergulha no inferno dos campos de trabalhos forçados por meio das provações do camponês Denisovich. Gostei. Mas para abarcar a magnitude […]
Corria o ano de 1975 quando conheci Alexander Soljenítsin, o escritor russo morto há uma semana. Eu já havia lido Um Dia na Vida de Ivan Denisovich, obra-prima que nos mergulha no inferno dos campos de trabalhos forçados por meio das provações do camponês Denisovich. Gostei. Mas para abarcar a magnitude da tragédia russa, esperei alguns anos até O Arquipélago Gulag ser lançado na França.
Eu reagi como muitos, muito lentamente. Para que o Ocidente tivesse a medida do horror, foi preciso que um escritor nos ensinasse o nome do horror, Gulag, e nos permitisse ver o invisível daqueles tempos – os campos de trabalhos forçados.
Em 1974, Soljenítsin, que perdera o apoio de Nikita Kruchev, pois este havia sido deposto e substituído por Leonid Brejnev – que detestava o escritor -, foi expulso da União Soviética. O proscrito passou então alguns meses na Suíça antes de seguir para os Estados Unidos. Foi nessa ocasião que eu o vi.
Naquela época, eu participava toda semana de um programa sobre literatura na TV, Apostrophes, de Bernard Pivot. Pivot convidou Soljenítsin. Ele veio. Pela primeira vez no Ocidente, eu creio, aparecia o rosto do autor do Gulag.
Do que foi dito naquela noite, pouco me recordo. A presença física daquele homem era esmagadora. Poderia dizer-se que era alguma coisa pertencente à natureza, uma árvore, um rochedo gigante. Ou uma catedral. Austero, inspirado, e, de vez em quando, explosões de riso. No set, todos estavam intimidados. Pivot fez uma bela entrevista. Eu permaneci no meu canto, quase mudo. Havia dois outros convidados, Jean d?Ormesson, do Le Figaro, e Jean Daniel, do Nouvel Observateur, mais aguerridos, o que lhes permitiu fazer melhor figura. Daniel tentou obter de Soljenítsin uma condenação da guerra que a França movia contra os nacionalistas argelinos. Em vão.
Durante a transmissão e depois, Soljenítsin nos contou o seguinte: em um daqueles campos, ele escrevia, em folhas recuperadas, textos breves, fragmentos, poemas, mas não podia guardá-las por causa das buscas. Assim, ele as lia e relia e, depois de memorizá-las bem, as comia. Essa lembrança me impressionou: comer seu próprio pensamento para não o entregar ou perder.
Mais tarde, no enorme A Roda Vermelha, uma personagem diz: “Já não tenho acesso às bibliotecas públicas. Os arquivos ficarão fechados para mim até a minha morte. Mas encontrarei na taiga uma casca de pinheiro ou de bétula. Meu privilégio, nenhum espião me tirará: o cataclismo que experimentei em minha pessoa e vi nas outras pode me soprar muitos achados sobre a história.”
Em 1976, Soljenítsin partiu para Vermont, nos EUA. Ali, ele morava em uma casa cercada de pinheiros e bétulas como na Rússia. Ele se recusou a aprender inglês. Desprezava o “modo de vida ocidental” e vociferava contra os EUA. Em 1994, ele finalmente voltou à Rússia.
Era um combatente que voltava. Ele vituperava Boris Yeltsin, a nova Rússia, desprezava Mikhail Gorbachev que, no entanto, participara da destruição da URSS. Ele não mudara: uma vez “imprecador”, sempre imprecador! Mesmo com o Gulag extinto, Soljenítsin pratica o incansável anátema.