Só pode chamar de “bicha” se o alvo da gritaria não for homossexual. Ou: Torcedores, levem Schopenhauer para as quadras e estádios!
Gritaria no Twitter porque o blogueiro Rica Perrone, que não conheço, resolveu chamar de “hipocrisia” a multa de R$ 50 mil aplicada pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva ao time de vôlei Sada Cruzeiro. Na primeira partida da semifinal da Superliga, parte da torcida do Cruzeiro chamou o jogador Michel, do Vôlei Futuro, que é […]
Gritaria no Twitter porque o blogueiro Rica Perrone, que não conheço, resolveu chamar de “hipocrisia” a multa de R$ 50 mil aplicada pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva ao time de vôlei Sada Cruzeiro. Na primeira partida da semifinal da Superliga, parte da torcida do Cruzeiro chamou o jogador Michel, do Vôlei Futuro, que é homossexual, de “bicha”. Isso foi no primeiro confronto. Na segunda partida, como desagravo, companheiros do rapaz usaram em quadra camisetas arco-íris, distribuíram à torcida objetos rosa-choque e abriram uma bandeira contra o preconceito.
Muito bem! Um clube ser punido porque seu estádio ou ginásio apresenta um segurança deficiente, vá lá. Por causa de palavras proferidas pela torcida? Bem, é claro que há exagero, e Rica Perrone está certo. Já foram a um estádio de futebol, por exemplo? “Viado”, com “i”, é o elogio mais inocente que se ouve. É bonito? Não é! Talvez um ensaio antropológico devesse lembrar o que uma disputa esportiva simula: guerra. Nem por isso, é evidente, a gente deve ser tolerante com a delinqüência.
Mas vamos devagar aí. Torcidas costumam pegar no pé de determinadas personagens do jogo. Os motivos variam muito. Ou se trata do astro de um time adversário; ou o sujeito era de uma equipe e se transferiu para a rival; ou é um provocador. Ou simplesmente inexistem os motivos. Uma coisa é certa: se um grupo de torcedores chamar de “bicha” ou “veado” um jogador que não é homossexual, nada vai acontecer. A denúncia tende a não prosperar. Se um homossexual chamar outro homossexual de “bicha” ou “veado”, também não acontece nada!
Ora, isso quer dizer alguma coisa, não? O uso de determinadas palavras, em que tom for, passa a ser privilégio de determinadas categorias. Uma “ofensa” deixa de ser “ofensa” a depender de quem é o ofendido? Uma ofensa deixa de ser uma ofensa a depender de quem é o ofensor?
É boçal ficar gritando “bicha, bicha” ou “veado, veado” para alguém em quadra ou no campo? Eu acho que é! Nunca recorri a essas palavras em estádio. Mas confesso que já ofendi, sem querer, a digníssima progenitora do juiz. Não que eu me orgulhe disso. Prometi nunca mais fazê-lo. Na verdade, na próxima vez em que for ao Pacaembu, que fica aqui ao lado de casa, vou ficar lendo “Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão”, de Schopenhauer, tentando convencer os meus camaradas corintianos de seu comportamento inadequado e pouco britânico. Eu me refiro, claro!, aos britânicos de Buckingham, não aos hooligans. Mesmo no palácio, acho que me refiro a William, não a Harry, o Vermelho…
É o melhor a fazer! Afinal, cheguei à conclusão de que os torcedores dos dois lados da peleja quase nunca têm razão. A primeira vítima numa disputa esportiva entre times é a verdade. Por roubado que seja, acreditem, o que há de mais verdadeiro num jogo ainda é o placar! Ah, sim: só volto ao estádio para ver o meu Corinthians quando o, como é mesmo o nome dele?, ah, Adriano voltar para a Vila Cruzeiro, para o convívio dos seus amigos.
Não conheço Rica, não sei o que pensa, nada! Sei que ele tem o direito de pensar e de discordar da punição aplicada. E, obviamente, outros podem discordar dele. O diabo é que a gente nota, em muitas manifestações, o ânimo para a censura mesmo! Mais: atribuem a ele o que não disse.
E que se note: cada vez mais, prospera no Brasil a aplicação de penas coletivas. Já que não se pode chegar à autoria do crime, então “queimem a aldeia”. E acham que isso é moderno e progressista! Vão se catar! O protesto dos companheiros de Michael, esse, sim, faz sentido. Mas pergunto: e se uma parte da arquibancada começasse a gritar de novo “bicha, bicha”?
Encerro com uma questão ao tribunal, até porque já vi isso acontecer: e se a torcida passa a hostilizar com palavras ofensivas um jogador do seu próprio time? O adversário pode recorrer à Justiça pedindo punição?