Quem é mesmo o inimigo?
Vou fazer o quê? Tenho divertimento toda terça-feira porque, às terças, o filósofo Marcos Nobre escreve na Folha de S. Paulo. A coluna de hoje se chama “O Inimigo”. Trata da reaparição de Osama Bin Laden e da política americana de combate ao terror. Ele segue em vermelho. E eu, em azul: POR ABSURDO que […]
POR ABSURDO que possa parecer, não faltou quem tenha comemorado a destruição das torres gêmeas de Nova York há seis anos como uma vingança contra o império norte-americano.
São as únicas linhas do texto em que ele não ataca a política americana. É só uma pequena trapaça. Parece que vai tratar daqueles que vibraram com o 11 de Setembro. Engano. Seu alvo é Bush.
Esse tipo de reação forneceu o combustível ideal para toda sorte de retrocesso institucional: aumento dos mecanismos de controle social, expansão dos serviços secretos de vigilância e repressão, restrição de direitos fundamentais, guerra. O 11 de Setembro inaugurou um período de incerteza para a democracia. O neoconservadorismo da era Bush cultivou a sensação de medo e de insegurança e transformou todos os temas do debate público em duelos maniqueístas entre o bem e o mal. Logo após o ataque, qualquer manifestação que não aceitasse esses termos simplificados era imediatamente reprimida como a manifestação de um inimigo.
Sempre que Marcos Nobre ataca a “simplificação”, eu ligo o meu complicômetro. Como se vê, o terrorismo, para o nosso filósofo, serviu de mero pretexto para os neoconservadores travarem seus “duelos maniqueístas”. O problema de Nobre é, em primeiro lugar, ideológico — ele é um “inteliquitual de esquerda”. E um “inteliquitual de esquerda” não aplaude a destruição das Torres Gêmeas, claro, mas também não condena o terrorismo. Ao contrário: diz que ele não existe; que é obra de um delírio.
Mas o nosso professor também é desinformado. E aí eu tenho pena é de seus alunos. “Hoje, quem estranha o Patriotic Act americano ou as medidas antiterrorismo não conhece a história”. Isso que vai entre aspas é do livro Sobre o Islã — A Afinidade entre Muçulmanos, Judeus e Cristãos e as Origens do Terrorismo, do jornalista Ali Kamel, este, sim, um estudioso. Ele lembra que o serviço secreto inglês manteve, entre 1940 e 1941, uma base clandestina, Latchemre House, onde os suspeitos de espionagem eram interrogados sem qualquer atenção à Convenção de Genebra. Os documentos ainda não estão disponíveis para pesquisa. Se alguém, num pub, dissesse um simples “não vejo como ganhar esta guerra”, poderia ser preso.
O decreto 9066, de Franklin Roosevelt, nos EUA, dava aos comandantes militares o direito de estabelecer áreas do país de onde comunidades inteiras podiam ser banidas. Foi o que aconteceu com os japoneses e nipo-americanos, removidos da Costa Oeste e levados para campos de detenção no Oregon, Arizona e Washington. Kamel lembra que foram confinados 120 mil indivíduos de origem japonesa — atenção: 62% eram pessoas nascidas nos EUA! O mesmo aconteceu no Canadá, e 75% eram canadenses!
E não ocorreu a ninguém dizer que a democracia estava em risco. Porque, evidentemente, não estava. Eram atos de guerra — nem sempre, com efeito, os mais suaves. Acontece que não se supunha que o governo inglês ou americano estivessem usando essas licenças especiais para destruir a democracia — suposição hoje presente no esquerdismo do miolo mole.
O desastre da Guerra do Iraque e a truculência dos principais auxiliares de Bush arrefeceu esse movimento de ataque à inteligência e ao debate ponderado. Mas não dá sinais de que vá servir também para frear a tendência a sacrificar direitos em favor de segurança em todas as partes. Não é mesmo fácil lidar com o medo e a insegurança, que são bastante reais. Só que o conservadorismo mobiliza esses sentimentos para bloquear a reflexão. Ao inculcar a idéia de que se trata de uma “guerra” contra “o terror”, divide o mundo entre amigos e inimigos.Notaram que, até agora, Nobre não atacou os terroristas? Beligerantes e truculentos são Bush e seus auxiliares. Muito bem. O autor tem um inimigo: os conservadores. Tirados estes do cenário, entendemos que tudo fica mais fácil. Porque aí Bin Laden e os terroristas deixam de ser uma ameaça. E será possível, então, declarar o fim da guerra — uma “guerra” certamente inventada pela direita americana. Má-fé ou ignorância? Não sei. O fato é que os ataques de 11 de Setembro começaram a ser planejados ainda no governo Clinton — e, como todos sabem, a Al Qaeda praticou ações terroristas ainda durante o governo democrata.E faz isso principalmente dando uma cara ao inimigo. Bush conseguiu convencer muita gente de que a Al Qaeda é de fato uma organização tão ou mais poderosa que um país inteiro e deu a ela a cara de Bin Laden. O próprio Bin Laden aceita muito bem o papel. Reapareceu de barba tingida e aparada para uma vez mais confirmar que é o inimigo. Cede de bom grado a “franquia” da Al Qaeda para toda sorte de atentados e ataques.Nobre nada mais faz do que usar de forma simplificada a tese de Noam Chomsky, o esquerdista-modelo da intelligentsia americana, para quem Bin Laden é uma espécie de invenção dos falcões. Aliás, Chomsky encontrou o seu momento de glória. No vídeo que divulgou mundo afora, acreditem, o intelectual americano é citado pelo terrorista — com elogios, é claro. Bin Laden, se vocês se lembram, falava aos americanos: “(…) Esta guerra era inteiramente desnecessária, conforme o testemunho de muitos dos que estão do seu lado. E o mais destacado entre vocês que lhes fala sobre este assunto e sobre a manipulação da opinião pública é Noam Chomsky, que deu conselhos sensatos antes da guerra, mas o líder do Texas não gosta daqueles que dão conselho. O mundo inteiro, de forma inédita, advertiu contra a guerra e descreveu a sua real natureza em temos eloqüentes: ‘Não ao derramamento do sangue vermelho pelo óleo negro (…)’”Eis aí: parte da universidade brasileira pensa rigorosamente como Chomsky — o que quer dizer que pensa como Bin Laden.Quebrar essa lógica perversa exige enfrentar o medo sem ceder a ele. Significa a recusa de criar um “outro” hostil, um inimigo que seria preciso eliminar. O perigo não desaparece só porque está longe da vista, em prisões secretas e ilegais. Também não desaparece porque se dá a ele uma cara. O que é preciso tornar visível são as causas do medo e da insegurança. Só assim é possível discuti-las abertamente, recusando o caminho da lógica beligerante do amigo-inimigo.E por que Marcos Nobre não nos diz, então, quais são as causas do medo e da insegurança? Ele tem tanta certeza de que não são aquelas apontadas pelo governo dos EUA, que só posso supor que ele tenha algumas hipóteses. Acreditem, leitores: essa fantasia que vocês lêem acima — a de que Bin Laden é uma invenção da direita americana — é moeda corrente na tristíssima universidade brasileira.Abrir mão de direitos em nome da segurança é caminho seguro para abrir mão de mais direitos. Porque significa delegar a alguém ou a alguma instituição o poder de definir quem é o inimigo. Quem delega esse direito hoje pode se tornar o inimigo de amanhã.É só um frase de efeito e uma maneira um pouco preguiçosa de concluir um artigo, certo? Afinal de contas, a democracia representativa existe também para isso. Vamos fazer o quê? Votar em praça pública quais são os nossos inimigos? Lula, com autorização do Congresso, pode ir à guerra, Marcos Nobre, em caso de agressão estrangeira. Pode até mesmo, ouvido o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional (artigo 137), solicitar ao Congresso autorização para decretar estado de sítio em caso de comoção grave ou de guerra. “Ah, mas os EUA não estão em guerra”. É um jeito de ver as coisas: de Marcos Nobre, de Chomsky, de Bin Laden — e, sei bem, de muita gente.