Os três tolos
Certa feita, a reportagem da Folha foi à reitoria invadida da USP e descobriu um movimento apolítico, sem lideranças, uma espécie mesmo de nova democracia ateniense. Uma semana depois, o Estadão foi lá e constatou o óbvio: a invasão era comandada por PSTU, PCO e PSOL e tinha no ultra-radical Sintusp, o sindicato dos funcionários, […]
Mas sabem como é… Uma vez identificada a “novidade”, aí é preciso dar substância ao menos teórica ao que não se sustenta nos fatos. Para fazê-lo, nada melhor do que contar com o concurso de três intelectuais uspianos, dois deles aposentados. O jornal reuniu para debater a invasão da reitoria o filósofo Paulo Arantes, 64 anos, e os sociólogos Francisco de Oliveira, 73, e Laymert Garcia dos Santos, 58. A quantidade de bobagem produzida foi proporcional à atuação desses valentes durante a crise e muito superior à soma de suas respectivas idades
A síntese que o próprio repórter fez foi reveladora: “Parece haver algo de novo no ar, embora ainda não seja possível dizer exatamente o que (…)”. É mais ou menos o que a gente pode dizer da casa de nossos pais quando ficamos um tempo sem visitá-la, e eles trocam uma poltrona ou compram um vaso. Há algo de novo, mas a gente ainda não sabe o que é. A culpa não é do jornalista Uirá Machado, não. A sua síntese é perfeita. Reproduz com exatidão o que podem produzir dois sociólogos e um filósofo quando se encontram para falar sobre o “nada”. Em O Ser e O Nada, diga-se, Sartre trata-se dessa sensação de vacuidade a que estamos todos mais ou menos condenados se dotados de algum pensamento.
Discutindo-se sabe-se lá o quê, Francisco de Oliveira, um pós-petista, hoje próximo ao PSOL (diria a minha mãe: “Estudou tanto e acabou junto com a Heloísa Helena!?), concluiu: “A ocupação da reitoria da USP mostra de forma escancarada que a política tradicional não tem mais capacidade de processar os conflitos sociais. É essa incapacidade que eu venho chamando de irrelevância da política“. Mostra por quê? Para que mostrasse, a primeira condição é que a invasão fosse, ao menos, um “movimento social”. Desafio este senhor — ou seus dois companheiros de papo de botequim — a provar, segundo algum critério minimamente científico, que ali estava um “movimento social”. Para tanto, deveria ao menos representar as necessidades efetivas de uma parcela significativa da tal sociedade, ainda que da sociedade uspiana. Mas quê! A invasão, nos seus “melhores piores” momentos, nunca reuniu mais de 200 pessoas — a larga maioria delas ligada a grupos de extrema esquerda, cuja principal característica é justamente desprezar a representação porque esta já seria uma mediação ilegítima. A maioria, ao contrário, queria estudar.
Aí vem Paulo Arantes, o amais aparentemente complexo da trinca. Ele fez fama na imprensa fabricando paradoxos que não têm resposta. Não porque complexos, mas porque irrelevantes. Passou oito anos prevendo o desastre do governo FHC. Hoje em dia, é um dos inconformados com Lula. Por mais que tente revestir suas análises de lustro acadêmico alternativo e não-alinhado, a verdade é que gostaria, a exemplo de Francisco de Oliveira, de um governo socialista, de esquerda. Como não é exatamente isso o que se tem, continua a nos oferecer a sua melancolia apimentada. No melhor do seu desempenho nesse debate, mandou bala: “Eu já disse isso a eles [os alunos], e eles ficam meio aborrecidos: foi uma ação de subversão —que parece subversão, mas não existe subversão numa sociedade permissiva — para o retorno ao statu quo ante. Zapatistas, ex-maoístas, trotskistas, independentes se juntaram, ocuparam a reitoria para que o reitor tivesse o direito do pleno exercício da execução orçamentária e financeira de uma universidade, que é puro establishment. É uma subversão pela ordem“.
Há uma soma de várias imposturas aí, além da revelação de um delírio. Comecemos por ele. Para que, então, não fosse um movimento a favor do statu quo, forçoso seria que a ação fosse revolucionária, certo? Embora negue, Arantes continua em Maio de 1968 — ou, quem sabe?, seu modelo seja o Sendero Luminoso, do Peru. Quanto a não haver subversão numa sociedade permissiva, trata-se de uma bobagem. Não sei o que ele entende por “permissiva”. Mas suspeito que também ele contasse com a tropa de choque — e, aí, então, teria onde pôr o seu discurso. Parece que o adjetivo “permissiva” pode estar no lugar “democrática”. E é óbvio que existe subversão numa sociedade democrática. Não é um juízo de valor, mas uma MENTIRA, a afirmação do “filósofo” de que os estudantes lutavam para que os reitores voltassem a ter o direito pleno de mexer no Orçamento. Pela simples e óbvia razão de que tal direito nunca foi arranhado, como os próprios reconheceram. Mais: se havia alguma dúvida, o decreto declaratório a dirimiu. Não obstante, o movimento se estendeu por mais 22 dias.
Arantes achou que não tinha ainda ido fundo na besteira e resolveu brincar de McLuhan do rio Pinheiros. Ao falar da invasão, sentenciou: “No conteúdo, não há nenhuma alternativa política substantiva. Na forma, é uma ação política inédita, que tende a se multiplicar, como fórmula, independentemente do conteúdo. O contágio então vem da tecnologia política, do modo de fazer. O conteúdo está na forma“. Do que ele está falando? O que é inédito? Invasão de reitoria? Estou enganado ou ele parece ligeiramente simpático a uma “tecnologia política (por exemplo: invadir um prédio e expulsar de lá os servidores) independentemente do conteúdo”? Estou enganado ou sua desilusão entusiasmada flertaria até mesmo com o fascismo, desde que garantida a nova “fórmula”?
Nas pegadas de Francisco de Oliveira, Laymert tenta refletir: “O grau de apatia, letargia e neutralização da política chegou a um ponto, que reivindicar o que os alunos estão reivindicando e apontar os limites das ações do governo já é uma coisa escandalosa“. Escandalosa para quem? Onde houve o escândalo? O que seria uma sociedade não-letárgica?
Três dinossauros
Oliveira, Laymert e Arantes fazem a mímica de intelectuais modernos — este último, em especial, por conta de uma retórica um tanto alucinada, finge uma profundidade que não tem e se diverte um tanto com a ignorância dos que o reverenciam. Os valentes parecem incapazes de entender que há pessoas — muitas mesmo! — que simplesmente rejeitam os instrumentos e os métodos de fazer política da esquerda. Mais: ocorre aos professores que pode haver na USP quem concorde com o conteúdo dos decretos, achando, inclusive, positivo que as universidades prestem diariamente contas de seus gastos?
Ah, mas agora vem o mais interessante. Ou você está com eles ou é um marginal político, um criminoso moral. Arantes refere-se ao abaixo-assinado e ao protesto contra a invasão (um só!) de “manifestações de extrema direita”, o que não se viu, diz, “nem na ditadura” (outra mentira). Vejam que coisa formidável: alguns gatos pingados de extrema esquerda meteram o pé na porta, invadiram a reitoria, expulsaram funcionários, agrediram um professor, trancaram portas de salas de aula, jogaram jatos d’água em jornalistas, e eles representam algo de novo. Diante deles, Arantes sente certo frêmito, um certo je ne sais quois. É indefinível como todo je ne sais quois (seria um borborigmo?). Mas ele está certo de que esse troço tem de novo, ao menos, a forma. Já os que se manifestaram pacificamente contra a invasão não são apenas de direita, mas de “extrema direita”. Imaginem. Sabem o que isso? Vontade de viver em Caracas. Lá, sim, sem dúvida, está acontecendo “alguma coisa”, e os movimentos, não duvidem, buscam virar do avesso o statu quo.
Por que é assim?
Querem saber por que a USP é, sim, uma universidade relevante na área técnica e de pesquisa aplicada e um solene entulho na área de ciências humanas? Por causa de gente como Oliveira, Laymert e Arantes. Não é preciso ir muito longe: é escandaloso que o mais importante instituto de pesquisas do país não pertença ao Departamento de Sociologia da USP, em associação com o Instituto de Matemática e Estatística. Eles não têm tempo — dirão que falta recursos, mas é mentira: existiria se houvesse a disposição. É que, antes, eles estavam ocupados vendendo a revolução. Agora, dedicam-se a vender o desencanto militante. E não têm nenhuma vergonha de tentar extrair algum ensinamento dos detritos deixados na reitoria por PSTU, PCO e PSOL.
Eis aí… Esses são os mestres. Imaginem, agora, como são os discípulos.