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Reinaldo Azevedo

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Ortotanásia, Igreja Católica e o que eu penso

Leitores me cobram uma opinião sobre a ortotanásia, que recebeu sinal verde da Igreja Católica, também da de Roma. E não contraria, não, o que dispõe a Santa Sé no seu Catecismo. Ortotanásia, como sabem, consiste em evitar o prolongamento da vida por meios artificiais, quando já não há mais esperanças de recuperação. Os próprios […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 6 jun 2024, 08h05 - Publicado em 12 nov 2006, 03h45
Leitores me cobram uma opinião sobre a ortotanásia, que recebeu sinal verde da Igreja Católica, também da de Roma. E não contraria, não, o que dispõe a Santa Sé no seu Catecismo. Ortotanásia, como sabem, consiste em evitar o prolongamento da vida por meios artificiais, quando já não há mais esperanças de recuperação. Os próprios médicos vêem com reservas a questão porque, ao que me consta, o Código Penal Brasileiro não está preparado para ampará-los de forma indubitável.

Vocês devem se lembrar do caso Terri Schiavo. Durante 15 anos, ela foi alimentada por um tubo, numa existência que se dizia vegetativa. Seu marido — ou ex-marido, já que houvera constituído uma nova família — recorreu à Justiça para suspender a alimentação. Criou-se um caso nos EUA. O tubo foi desligado no dia 19 de março do ano passado, e ela só morreu no dia 31. Seus pais e seu irmão queriam cuidar dela. Mas o marido é quem tinha o direito legal. E o exerceu. Escrevi, então, um texto chamado “O assassinato de Terri Schiavo e o direito de regar gerânios”, em que criticava a decisão da Justiça Americana.

No debate sobre a ortotanásia, a Igreja Católica diga o que quiser. Não concordo. Abre-se um grave precedente. Ainda que haja diferença entre tomar providências para uma morte sem sofrimentos (eutanásia) e deixar de tomá-las para prolongar a vida (ortotanásia), o que me parece é que, nos dois casos, não se mobiliza o conhecimento a favor da vida. “Que vida tem quem vegeta?”, poderá perguntar alguém. Olhem cá, meus caros: posso parecer maluco às vezes ao opinar sobre quase tudo, mas não me peçam para brincar de Deus. Não posso arbitrar sobre o direito de viver ou de morrer. Por isso, oponho-me à pena de morte em qualquer circunstância — por mais facinoroso que seja o réu.

Sei que o assunto é polêmico. Neste caso, o da ortotanásia, creio haver argumentos muito razoáveis contra a minha opinião. Ouço-os, acolho-os, dialogo. Mas não tergiverso no que me parece ser questão de princípio. Abaixo, em azul, reproduzo trechos daquele artigo sobre Terri Schiavo. O arquivo de Primeira Leitura não está mais disponível da rede — ainda estará. Por isso, deixo aqui o link do Instituto Jacques Maritain do Rio Grande do Sul, que reproduziu a íntegra do texto. Aliás, tive a honra de sabê-lo publicado em várias línguas, mundo afora.

(…)
Os argumentos que justificam a interrupção do fornecimento de alimento a Terri Schiavo evidenciam uma fantasmagoria verdadeiramente totalitária na mais importante democracia do mundo. O Estado, com o concurso dos cientistas, arroga-se o direito de decidir qual vida merece ser vivida, estabelecendo, pois, a partir desse caso, quais seriam as condições mínimas aceitáveis. Até o Deus do Velho Testamento aceitava recurso. Quem foi que deu a cientistas e juízes tais direitos?

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Proponho aqui uma questão aos meus leitores: ainda que Terri fosse mesmo um vegetal, porque seus pais e seu irmão não teriam direito de “cultivá-lo”? Por que os juízes decidiram lhes arrancar do jardim da vida — sim, que, então, segundo eles próprios, é vida, mesmo que vegetal — a rosa, a begônia ou o jacinto de sua dor e de seu amor, de seu afeto e de sua tristeza, de seu cuidado e de seu sofrimento?
(…)
O homem, criado à imagem e semelhança de Deus — e, por isso, com a vida inviolável por qualquer outra força —, é uma idéia que nos protege como espécie. Mas alguns bárbaros do direito e da ciência preferem ser, eles próprios, o Deus que renegam. A morte de Terri Schiavo, nas condições em que se dá, nos expõe ao risco do terror científico. Todo americano deve ter o direito, suponho, de cultivar, se quiser, gerânios na janela. Seus pais deveriam pedir aos juízes americanos que a filha fosse declarada, então, um gerânio, que nenhuma lei impede que seja regado. Os que defendem a medida adotada, mesmo entre nós, podem me mandar e-mails dizendo por que proibir os pais de Terri de cultivar gerânios; podem me dizer por que ela deve morrer seca, esturricada, como uma erva daninha.

Sou evidentemente contrário, e já se percebeu, creio, a isso que chamam eutanásia. Não aceito, em princípio, que se estabeleçam precondições para definir vidas que mereçam ser vividas ou interrompidas. Será isso tão reacionário quanto alguns fazem crer? Meu pai padeceu longamente de um câncer, que depois se generalizou em metástases várias. Todo o meu entendimento com a excelente equipe médica que o atendeu era para usar as drogas disponíveis para amenizar-lhe a dor. A anestesia, esta, sim, traz em si o sopro da divindade, vem nas asas dos anjos. A eutanásia é só a voz suave do demônio. Falo por metáfora. Chamo aqui “demônio” a tentação dos que pretendem assumir o lugar do absoluto por um golpe da vontade, como se os assistisse “o” saber absoluto.

Meu pai já não podia mais se comunicar, mas estava vivo. E, me garantiu o médico, Paulo Zago, não sentia mais dor. Não sofria mais. Até seu último suspiro, que eu não olvidaria esforços para retardar, construí e reconstruí teias de afetos e de lembranças, caminhei pelos desvãos da memória, tentei entendê-lo melhor e a mim mesmo. Queria me fazer, e talvez tenha conseguido, a partir dali, um homem melhor. Meu pai estava vivo porque sua vida, mesmo naquelas condições, vivia em mim, na minha irmã, na minha mãe, nos seus netos, na generosa rede familiar que se criou, incluindo sobrinhos, irmãos, cunhados, amigos, para protegê-lo e dignificá-lo.

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Seu corpo ainda morno, embora já não mais emitisse qualquer sinal de consciência, me acolhia e me amparava, cobrava de mim entendimento. Até que não se dê o último suspiro, não tem início o luto, e quem o determina é o inelutável, não um togado arrogante ou um aprendiz desastrado de Deus. Uma vida, nem que seja a de um aspargo, senhores juízes, não vive apenas em si mesma. Existe na circunstância, no mistério dos sentimentos que mobiliza, numa construção que não se esgota nas ciências biológicas ou jurídicas. O assassinato de Terri Schiavo deveria nos ofender gravemente.

Já escrevi aqui: sou mais tolerante na vida privada e no trabalho do que, talvez dê a entender o meu texto, que tem sotaque reconhecidamente militante em relação às coisas em que acredito. Costumo bater muito duro e, obviamente, sei bem o que quer dizer aquela lei de Newton. Digo sempre que isso é do jogo. Não vou para o confronto para ofender nem me deixo ofender facilmente. Quem está nessa profissão tem de ter a casca dura. Assim, sigo aquela máxima de Terêncio e me escandalizo pouco com a variedade humana porque, vá lá, nada do que é humano posso reputar absolutamente estranho a mim. Mas certas manifestações organizadas, confesso, testam, se não a minha tolerância, ao menos a minha compreensão.

O que, na opinião de vocês, faz com que pessoas saiam de casa, se organizem, escrevam cartazes, ganhem as ruas, se mostrem, fundem ONGs, e tudo para defender algo como a eutanásia — vale dizer, a morte? Fico cá me perguntando como podem ter tanta certeza e clareza sobre o ponto de inflexão em que uma vida deixa de ser vida ou em que um “não se sabe o que seja” ainda não é vida? Nem chega a ser o interesse pessoal — como talvez seja o do ex-marido de Terri. Assim fosse, bastaria que deixassem registrado em juízo ou numa fita de vídeo o tratamento que gostariam que lhes fosse dispensado em situação semelhante.

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Não! Em vez disso, tornam-se mesmo militantes da morte, estetas da solução final, prosélitos do homicídio humanitário, dignatários do fim de um tabu: a inviolabilidade da vida. Santo Deus! Quantas são as causas para as quais os convocam, todo dia, a vida e seu ofício?! Quantas são as crianças abandonadas neste vasto mundo?! Quantas são, então, as pessoas dotadas da tal “consciência” (que eles tomam como critério do que é vida), mas entrevadas por limitações físicas que cobrariam a sua mobilização e a sua disposição para a luta?! Por que se organizam para nos oferecer a boa morte? Qual é, afinal de contas, a utopia dessa gente?(…)O marido de Terri, Michael Schiavo, foi claramente adotado pela mídia “progressista” nos EUA e no mundo. Os esforços para manter Terri viva são tratados como radicalismo de fundamentalistas cristãos, sejam os católicos, sejam aqueles que rodeiam Bush. Pesquisas de opinião — aquelas mesmas que davam a vitória para John Kerry nas eleições presidenciais — acusam perda de prestígio do presidente americano ao se mobilizar para permitir que os pais tentassem recorrer à Justiça federal.(…)

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