Oriente Médio e Inverno Árabe – Entre uma ditadura amiga e uma ditadura hostil, nenhuma opção é boa, mas só uma é sensata
Escrevi ontem um texto sobre o que chamo, faz tempo, de “inverno árabe” — bem antes de Mitt Romney; foi ele que me copiou (o pior é que tem há petralha que leva o gracejo a sério) —, e algumas confusões se instalaram. Vamos ver. Eu não faço distinção entre boas e más ditaduras. Se […]
Escrevi ontem um texto sobre o que chamo, faz tempo, de “inverno árabe” — bem antes de Mitt Romney; foi ele que me copiou (o pior é que tem há petralha que leva o gracejo a sério) —, e algumas confusões se instalaram. Vamos ver. Eu não faço distinção entre boas e más ditaduras. Se ditaduras, todas são ruins e têm de ser derrubadas. Mas exijo, para que lhes reconheça a superioridade moral, que as forças que tentem ou consigam derrubá-las sejam, então, partidárias da democracia. É o que se vê na dita “Primavera Árabe”? Perdoem-me, mas não é. E acho, como atestam os arquivos, que percebi isso bem precocemente.
Eu nunca caí na “Revolução do Facebook”, como se a rede de relacionamentos fosse o símbolo de uma sede de modernidade que aqueles povos trouxessem, em si, latente. Considero isso tudo feitiçaria teórica. Acho encantadora a ideia de que os terroristas e fundamentalistas odeiam o Ocidente porque, no fundo, temem a vontade de mudança que carregam em si mesmos. A tese é bonitinha, mas pode render, no máximo, um bom ensaio psicanalítico: “Eu te mato porque te desejo”. Na ordem dos fatos do mundo, as coisas não são assim.
A “revolução” no Egito foi, desde sempre, comandada pela Irmandade Muçulmana. Os ‘liberais” que aderiram alimentaram a ilusão de sempre nesses casos. Ajudam a angariar o apoio do Ocidente para a causa dos radicais. Há quem veja na Irmandade o caminho para uma democracia islâmica? Há, sim! Não é o meu caso. A revolução na Líbia contou com a participação dos jihadistas desde o princípio — e mais a miríade de grupos religiosos. E foram as várias tonalidades de fundamentalismo que se manifestaram na Tunísia, no Iêmen e onde quer que a onda tenha chegado — frequentemente, com financiamento das ditaduras da Arábia Saudita e do Catar. No caso desse emirado, então, a coisa chega a ser patética: sua emissora de televisão, a Al Jazeera, passou a ser tratada pela imprensa ocidental como fonte confiável de informação, que obedeceria a critérios de isenção jornalística. Tenham paciência!
O teor de democracia aumentou, na média, na região? A resposta é desenganadamente negativa. Sem eleição, não há democracia. A existência de eleição, no entanto, não é evidência de democracia. Pode-se recorrer às urnas para impor, por exemplo, uma ditadura de maioria, sim. Afinal, o regime democrático supõe também um conjunto de valores — e a tolerância com a divergência é um deles, se não for o seu pilar principal. O teor de fundamentalismo aumentou, na média, na região? Aí a resposta é desenganadamente positiva. E onde o fundamentalismo religioso cresce, a democracia fenece ou não vinga. É da natureza das coisas. Os dois valores não conseguem ocupar o mesmo lugar no espaço intelectual, moral e institucional.
Eu queria que os EUA continuassem a dar suporte às ditaduras árabes, algumas suas tradicionais aliadas? Ninguém vai me flagrar afirmando: “Apoie aquela ditadura ali”. Mas não vi bons motivos, e ainda não vejo, para que os EUA, sob o comando deste impressionante Barack Obama, decidisse aderir a forças tão antidemocráticas quanto as que estavam caindo em desgraça, com o agravante de que são, ademais, virulentamente antiamericanas e antiocidentais.
Ora, a adesão encantada do Ocidente àqueles movimentos já trai uma ilusão no próprio nome de batismo: “Primavera Árabe”, nome que surgiu primeiro na imprensa ocidental, aludindo, como é evidente, às “primaveras” dos países que tentaram se livrar do jugo soviético no século passado. Naquele caso, sim, tratava-se de um movimento em defesa dos direitos fundamentais, da liberdade de expressão, da, enfim, democracia. Nunca foi o caso das revoltas árabes. Toda ditadura é ruim. Nem toda força que se opõe à ditadura de turno é boa.
Mensagem do poder
Ora, qual é a mensagem que os novos poderes passam às massas radicalizadas por prosélitos religiosos? No mais das vezes, açulam o sentimento religioso. Veja-se o pretexto de agora para as revoltas que pipocaram pelos países islâmicos. Tudo teria acontecido por causa de um filme amador, produzido nos EUA, cujos trechos teriam chegado, via Youtube, aos países islâmicos. Como foi considerado ofensivo ao Islã, então as massas saem ensandecidas, queimando e matando os “adversários”…
O que fez o governo da Irmandade no Egito, por exemplo? Duas coisas: está reprimido os mais exaltados, ofereceu proteção aos potenciais alvos dos agressores, mas, ao mesmo tempo, marcou uma manifestação pública de repúdio ao tal filme. Não faltará entre nós quem veja nisso um ato de esperteza e de até habilidade política — afinal, ao controlar a manifestação e assumi-la como oficial, estar-se-ia, ao mesmo tempo, pondo a massa sob controle!
Uma ova! Essa dialética do obscurantismo não me seduz. À ditadura do de Mubarak, no Egito, deveria ter se sucedido um governo que fosse à televisão deixar claro à população que não cabe a um país tentar impedir a ação de indivíduos de outros países. “Ah, Reinaldo, você não espera, agora, que um governo islâmico vá explicar à sua população que, nas democracias, as pessoas põem fogo na Bíblia, no Corão, da bandeira…” Eu não espero nada! Só não me peçam que me encante com um governo que decida dar uma direção moderada para o sectarismo. Tampouco me peçam que aplauda Barack Obama por ter confundido a Primavera do Fundamentalismo com a Primavera da Razão.
Na Líbia, relembro, os EUA aderiram a um dos lados de uma guerra civil. Quem derrubou Kadafi foi a Otan. Os assassinos dos diplomatas chegaram ao poder pelas mãos de Obama e David Cameron. E isso é só matéria de fato. Muito bem! Como é que esses novos governos devolvem os males para a Caixa de Pandora? Mimetizando os métodos das ditaduras que derrubaram? Poderiam ter chegado ao poder, ao menos, sem a ajuda de Obama… De resto, houvesse uma de duas opções — uma ditadura amiga e uma ditadura hostil —, nenhuma opção seria boa, mas só uma seria sensata.
Que fique bem claro uma coisa: eu não estou escolhendo ditadura nenhuma. Quem escolheu foi o presidente dos EUA. Daí Hillary Clinton ter ficado tão surpresa: “Como isso pôde ter acontecido em um país que ajudamos a libertar, na cidade que ajudamos a salvar?”.
Pois é, tia…