O verdadeiro, o verossímil e o terror
Vou ligar para o meu amigo Gerald Thomas para conversar sobre a representação. Desde Aristóteles, vocês sabem, estão devidamente categorizados, para o drama, o verdadeiro e o verossímil. Não são a mesma coisa. Às vezes, são até contraditórios e excludentes. Em arte, o que é o verossímil? Em última instância, é uma narrativa convincente, que […]
Em arte, o que é o verossímil? Em última instância, é uma narrativa convincente, que acreditamos possível, ainda que seja essencialmente mentirosa. Mas é mais complexo do que isso, conforme ficará claro. Já o verdadeiro… Bem, por mais que se possa argumentar que a verdade é sempre relativa, é evidente que há dados da experiência que não podem ser contestados. Fiquemos no absolutamente óbvio: duas laranjas mais duas laranjas somam sempre quatro laranjas. A partir de uma certa dose, mínima, o arsênico mata. Isso não comporta controvérsia.
De maneira geral, a arte trabalha com o verossímil, com a impressão da verdade — mesmo que seja uma verdade não-realista —ou não-naturalista, como queiram. Há um filme de que gosto muito que leva essa questão para o centro do “palco”: Dogville, de Lars von Trier, estrelado por Nicole Kidman, num desempenho formidável. Todas as verdades ali são demasiadamente humanas, mas tudo é feito para evidenciar a “mentira”: está claro, desde sempre, que aquilo tudo é “só” cinema (o correto, vejam o filme, seria dizer é “só” teatro). Nesse caso, a mentira serve gloriosamente à verdade.
A vida, esta nossa, ou as realidades políticas são íntimas da representação. E precisam, desesperadamente, ser verossímeis. Precisam, em suma, ser mais convincentes do que propriamente verdadeiras. Por que este longo preâmbulo?
As autoridades do Equador afirmam que até 10 mexicanos podem ter morrido no ataque que a Colômbia fez ao acampamento dos terroristas das Farc. Seriam estudantes e professores que estavam lá… “estudando”. Até esta manhã, haviam sido identificados dois membros da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Autônoma do México: Lucía Morett Alvarez, ferida, e Juan Gonzáles del Castillo, que morreu. O site do jornal El Tiempo chegou a noticiar que eles poderiam estar fazendo um curso de explosivos. Segundo o pai de Lucía, ela estuda “arte dramática”. É mesmo? Lá no mato?
Vamos ver. Quem passou a “informação” à imprensa mundial foi Gustavo Larrea, ministro da Segurança do Equador, justamente aquele que aparece nos computadores de Raúl Reyes como o principal contato das Farc no governo. Olhem: é bem possível que seja verdade. Essa presença é necessária para compor uma história verossímil.
Fazer o quê? Admitir que países legalmente constituídos, como Venezuela e Equador, dão abrigo e/ou financiam um movimento terrorista? Ora, admiti-lo tem suas implicações, certo? Ou estes países passam a ser considerados também terroristas ou se admite o terror como forma legítima de luta.
Então se cria a fantasia da “resistência humanitária ao imperialismo”, recobrindo as atividades das Farc — que seqüestram, torturam, matam e traficam drogas — com o mito de um velho novo humanismo parido no coração da selva — ou das trevas. Para que isso seja convincente, como deve ser toda obra verossimilhante, é preciso criar algumas fantasias que confiram “verdade” à mentira.
E a mentira verossímil, nesse caso, consiste em transformar o acampamento dos terroristas numa espécie de Meca ideológica de um modelo alternativo de sociedade, que deve ser acolhido, estudado, entendido.
E, no entanto, sabemos que o único sistema que garante aquela pluralidade que eles vão lá buscar é este nosso — vale dizer: os estudantes mexicanos foram procurar no acampamento dos terroristas aquilo que eles já tinham em seu próprio mundo: a liberdade de escolha que só a democracia garante. Uma liberdade que permite, inclusive, que se odeie a democracia.