O samba-rap-do-branquelo-doido
Alguns leitores, a maioria carioca, estão bravos com as críticas que fiz ao desfile de escola de samba do Pan. Pois é. Achei cafona. Acusam meu bairrismo. Bairrismo? Tenho tanto orgulho de ser paulista quanto de abrir e fechar uma gaveta. A festa foi brasileira, não carioca. De fato, lamentei não ter estado lá, naquele […]
O que vocês queriam?
Por que os ritmistas brasileiros têm de se parecer com congoleses?
Não é especialmente feio nem especialmente bonito ser congolês. Apenas não precisamos e não devemos ser o que não somos. Mais ainda: não precisamos e não devemos cumprir a expectativa que o olhar estrangeiro têm de nós. É simples assim.
Por que, por exemplo, a onipresença do samba nas festas brasileiras, com as “outras” culturas entrando apenas como filigranas ou ornamentos nem tão discretos assim — cobra, jacaré, sei lá o quê? O samba não é um dado cultural da Região Sul. Não é da Norte. Não é da Centro-Oeste. Não é de São Paulo, de Minas, do Espírito Santo. Não é do Nordeste — a Bahia, nesse caso, rende um bom debate. Se é para folclorizar, onde estava, por exemplo, a cultura caipira?
Acho chata, aborrecida mesmo, essa conversa sobre a “nossa identidade”. Eu, por exemplo, prefiro as pessoas que se identificam com alegrias e melancolias universais. Um nativo raspando uma cuíca ou um escocês de kilt tocando sua gaita me são indiferentes — desde que longe de mim. A cuíca tem tanta importância no Brasil contemporâneo quanto a gaita e o saiote na Escócia contemporânea.
Pior. Quando decidimos ser modernos, antropofágicos — ou “neo-antropofágicos”, como no Hino do Pan, de Arnaldo Antunes e Liminha — reiteramos na miscelânea cafona, no samba-rap-do-branquelo-doido. Vejam aquela letra, de que destaco um trecho:
Brancos de uma tribo anglo-saxã
Ketu e angola, jeje nagô e iorubá
É uma tentativa de saudar a mistura das Américas, com o enlace final das culturas ameríndia e africana. Há um único — ÚNICO — traço que une as três Américas: o cristianismo. Cadê ele? Sumiu. Os americanos são os “brancos da tribo anglo-saxã”; os brancos latinos são os “bárbaros ibéricos”. Até Alá entrou dando uma mãozinha, mas não o Redentor, “braços abertos sobre a Guanabara”. Papo de cristão? Pode ser. Mas é o cristianismo a nossa mais universal, profunda e duradoura influência. Negá-lo é fazer má história. Ignorá-lo no pressuposto de que se exalta a miscigenação é fazer proselitismo de particularismos culturais; é excluir a maioria. É, em suma, uma burrice. O Brasil-síntese que cita Iemanjá tem de citar, antes dela, Nossa Senhora. O Brasil-Síntese que cita Alá tem de citar, antes, o Cristo.
Perguntem a um nortista comum, da rua, o que é o boitatá. Ele não tem a menor idéia. Graças a Deus! Assim como paulista não nasce sabendo picar fumo e tocar viola. Boitatá, Mãe das Águas e sei lá que outros símbolos são, como vou dizer?, a “Loura do Banheiro” do folclorista nativista. Não passa de fantasia regressiva. Será que isso explica que o Brasil seja, na aparência ao menos, o mais feliz dos países atrasados? Façam uma festa exaltando a soja, a Vale do Rio Doce, a Embraer… Aceito até o biodiesel de Lula, o vaiado. Mas não me venham exaltar particularismos irrelevantes disfarçados de culto à miscigenação. A festa do Pan foi o que é todo desfile carnavalesco: o samba-do-crioulo-doido.
PS: Em tempos normais, um texto como este seria considerado coisa corriqueira. Não é mais. Os críticos de cultura também estão empenhados em buscar em alguma metafísica primitiva, quem sabe pré-colombiana, a verdadeira “alma brasileira”. Não é por acaso que Lula foi eleito.