O que querem os cães Reinaldo Azevedo e Alberto Dines
Alberto Dines errou no alvo e na etimologia e resolveu enfiar a viola no saco, escrevendo agora sentenças morais muito pudorosas sobre o ser humano, a violência retórica etc. O nosso Castilho do jornalismo está mal acostumado. Por alguma razão que não se explica, ele realmente se considera acima de divergências mundanas e se vê […]

Sem citar o meu nome, mas insistindo na tese do “cão de guarda”, que foi como ele me chamou, escreve em seu Observatório da Imprensa, que só tem janelas para “denunciar” “a direita” (segue em vermelho):
“(…) a aldeia global está tomada por uma hidrofobia que, diferentemente da outra (transmitida por cães, gatos, lobos e morcegos), é veiculada apenas pelo homem.
Cônscio da sua racionalidade, o ser humano moderno age como um irracional. Há um delírio verbal no ar. As palavras, teoricamente destinadas a elevar e promover aproximações, converteram-se em instrumento da baixaria, armas de destruição. O conhecimento, ao invés de estimular a tolerância, está sendo usado apenas para acirrar as intransigências. Inclusive no campo da genética e da cosmologia.
Tempos de cólera, dias de ira: o fenômeno não é casual, místico, abstrato, tem raízes na realidade, está fincado numa tradição de rancor que remonta à antiguidade. Nem a filosofia nem a religião conseguiram descontaminar a diversidade e o dissenso, ao contrário, só acirraram a exaltação e a intolerância.
Os mais intoxicados são justamente os “iluminados”, os messiânicos, os parceiros dos deuses. A besta se solta justamente naqueles que se acreditam donos da verdade. Sabem que não o são, por isso usam o tacape, por isso recorrem ao canibalismo.
O mundo não está em guerra, mas a humanidade está em processo de degradação porque polarizou-se em torno das simplificações e aberrações. A politização barata e a partidarização têm sua quota de responsabilidade nesta hostilidade generalizada onde primatas como Bush e Chávez converteram-se em paradigmas absolutos.
Briga dá Ibope
Como mercenários contratados para matar, hoje estão disponíveis a preços módicos os homens-bomba a serviço do radicalismo e do desentendimento. Esquecida da sua função mediadora, a mídia resolveu explorar o grande circo sadomasoquista onde impera a desinteligência e falta de inteligência. Briga vende, aumenta a audiência, dá Ibope.
Os modernos cães de guarda, watchdogs, lembram os medievos dominicanos (Domini canis, cães do Senhor) que acabaram donos da Inquisição, a multissecular entidade religiosa encarregada de assassinar idéias com o pretexto de liquidar heresias.
Com pit bulls babando ódio e sangue é impossível estabelecer um clima de diálogo ou, pelo menos, negociação. A perenização dos conflitos só interessa aos donos dos canis ou àqueles que abominam a convivência e apostam em rupturas.
Voltei
Nem sei por onde começar. Briga até pode render Ibope pra mim. Para ele, não rende. Nem assim. Esse seu post está no ar desde anteontem e, até as 4h46 desta segunda, contava com 18 comentários. Dines consegue leitores quando eu lhe dou uma chicotada, e os internautas deste blog (mesmo os que me detestam) vão lá socorrê-lo. Aconteceu com o primeiro em que me atacou. Havia meia-dúzia de comentários. Falei dele aqui, chegaram a 165. Dines já sabe: quando estiver com saudade dos leitores, é só me atacar. Se eu reagir, o sucesso está garantido.
O homem, está dado, tem um “cérebro travesso” (Antero de Quental) debaixo dos cabelos brancos que sugerem sabedoria e ponderação. A referência aos “dominicanos” é uma indireta ao “cão” católico, ao “cão do Senhor”, que sou eu. Mais um pouco, ele vai começar a dizer que eu o persigo só porque ele é judeu… Vocês sabem: os petalhas já me acusaram de sionista. Se preciso, acusam também de anti-semita…
Dines, já sabemos, não pode ser professor de etimologia; então tenta ser o mestre enfezado de moral e civismo. Sempre que alguém como ele ataca os que se julgam “donos da verdade”, a mentira crava um tento. O já comentado tom pudoroso logo escolhe o caminho da zoologia (des)classificatória, e ele fala dos “pit bulls babando ódio e sangue”, sinonímia para “cães do Senhor”. Grande homem! Grande humanista! Grande moralista! Olha teu rabo, macaco!
Uma das piores partes da tirania é a facilidade com que estratagemas idiotas e inúteis passam por atos heróicos. Como se vê, era uma espécie de “Chico Buarque da previsão do tempo”: quanto mais metáfora, melhor. Leiam a letra de Rosa dos Ventos, de Chico: “E na gente deu o hábito/ De caminhar pelas trevas/ De murmurar entre as pregas/ De tirar leite das pedras/ De ver o tempo correr”. Isso queria dizer que… Bem, isso não queria dizer nada. Mas parecia humano, profundo e contra a ditadura.
Vá lá, poder-se-ia dizer, o homem resistia à tirania. É… Na meteorologia, sim. Já quando escrevia como Alberto-Dines-Sem-Metáfora, o pit bull do simbolismo contra a ditadura foi bem mais manso. Ao contrário: abanou a cauda para o golpe de 1964, e disso pouca gente sabe. E não só ele. Já chego lá. Apoiou e deixou registrado o seu pensamento no livro Os Idos de Março e A Queda em Abril. Ele e outros jornalistas falaram sobre o golpe a quente. A simpatia pela deposição de João Goulart é tão escancarada quanto a ditadura que viria mais tarde.
Em 2004, nos 40 anos do golpe e do livro, Dines tentou se explicar, sempre julgando, como é de seu feitio: “A imprensa que foi cúmplice, e depois vítima [do golpe], parece constrangida. Não se sente à vontade para ver-se espelhada nas suas páginas. Prefere generalizar: esquece 1962 e 1963¹, confunde 1964 com 1968², engasga-se com a sua parte na lenda do ‘milagre brasileiro’, passa pelo período 1974-78 como se já estivesse tudo clarificado e preserva alguns vilões que lhe foram de grande utilidade (Delfim Netto, Paulo Maluf e figurões que continuam aboletados no poder como Sarney e ACM). Contenta-se com a titulação melodramática tipo ‘Os Anos de Chumbo’, relembra o romantismo das canções e vai em frente imaginando que em 2014, 2024 ou, quem sabe, em 2064 os pingos sejam finalmente colocados nos ii”.
Eu explico duas referências que estão apenas sugeridas no trecho acima:
1 – Acho que ele quer dizer que a desordem de 1962 e 1963 tornava a intervenção militar quase um desdobramento óbvio — quem sabe necessário;
2 – Dines e outros que apoiaram o golpe militar gostam de distinguir o “1964 de Castello Branco” do “1968 de Costa e Silva”. Na nomenclatura de Elio Gaspari, ele quer dizer que foi da turma da “ditadura envergonhada”, não daquela da “ditadura escancarada”.
Dines não estava sozinho, é verdade. Outro progressista, Antonio Callado, que escreve um dos artigos daquele livro, alinhou-se aos golpistas. Dois dos mais duros textos contra Jango foram publicados como editoriais no jornal Correio da Manhã: “Basta!” e “Fora!”. Sabem quem ajudou a escrever o “Basta”? Carlos Heitor Cony!!! Sim, ele mesmo: o mega-indenizado (dinheiro que nós pagamos) supostamente perseguido pela ditadura que ele próprio ajudou a implementar.
Leiam isto, que também está no livro A Ditadura Envergonhada, de Gaspari: “Em julho de 1999, o jornalista Carlos Heitor Cony, contou-me que a base do editorial, na sua primeira versão, foi manuscrita por [Otto Maria] Carpeaux. Submetida a [Edmundo] Moniz, começou um processo de redação conjunta, da qual participaram ele, Cony, Carpeaux e Moniz. Cony informa que o tom do texto pode ser atribuído a ele e a Carpeaux. ‘Na boa técnica da produção dos editoriais, esse foi resultado de um trabalho coletivo. Entraram idéias de diversas pessoas. Um bom editorial, em termos de autoria, é coletivo como uma catedral gótica”. O que vai aí é trecho da nota nº 73 do livro, que está na página 65.
A situação era tão interessante, que Callado, um golpista de primeira hora, começou a ver desvios na “revolução” e escreveu um texto com críticas ao movimento, que foi rejeitado pelo Jornal do Brasil, de que Alberto Dines era redator-chefe. Ele estava se preparando para escrever metáforas sobre nuvens e vendavais.
O que quer Reinaldo Cão?
Desafio os beócios a isolar uma linha ou texto que eu tenha escrito em que defenda qualquer medida de força contra o que está na Constituição ou nas leis. Ao contrário: é justamente o desrespeito sem punição aos códigos o que provoca a minha fúria. E sei muito bem onde tenho o nariz.
Cito um exemplo. O hoje governista Fábio Wanderley Reis escreveu, em 2001, um texto chamado “Brasil ao quadrado? Democracia, subversão e reforma”, que foi debatido por banqueiros. Lá pelas tantas, escrevia: “Creio haver boas razões para reservas quanto à perspectiva de que um Lula ou assemelhado assuma o poder presidencial e o exerça sem mais até o momento de transferi-lo ao sucessor. Falta a nossa democracia passar por este teste”. Eu o critiquei duramente no site Primeira Leitura pelo que me pareceu um flerte, ainda que distante, com um golpe. E não que eu não quisesse, como vocês devem supor, que o PT fosse combatido. Hoje que Reis é lulista, eu continuo a criticá-lo. Ele mudou; continuo o mesmo.
Sabem o mais interessante dessa história? O livro Os Idos de Março e A Queda em Abril é bom. Deveria ser reeditado. Dá conta da barafunda em que estava metido o governo João Goulart. Mas também é um evidência de uma outra tese que já desenvolvi aqui. A democracia brasileira foi pro vinagre naquele ano por falta de quem a defendesse com convicção. De uma lado e de outro. Os intelectuais de então cumpriam rigorosamente o papel que cumprem agora (a maioria ao menos): eram bobos alegres, fosse no apoio ao protogolpista João Goulart, fosse no esforço para derrubá-lo, também com um golpe.
Chamando “pit bull”, “cão de guarda” e “cão do Senhor” a quem jamais emprestou um adjetivo ou um substantivo ao que não fosse estritamente legal, Dines também se volta contra os “donos dos canis” e “aqueles que abominam a convivência e apostam em rupturas”. Encaro isso como uma espécie de expiação e purgação de pecados, embora ele o faça muito à sua maneira: atacando. Ele sabe que emprestou a sua pena aos primeiros tempos do golpe militar. Afinal, como ele mesmo disse, “primeiro cúmplice, depois vítima”.
Melhor assim. Que tudo fique claro. Essa questão não merecia mesmo ficar apenas com os 18 leitores de Alberto Dines.
É isso. Mato a cobra e mostro a cobra. Não basta mostrar o pau.