O que é um banco filomendigo?
Tanto a Folha como o Estadão vêm qualificando o tal banco (nota abaixo) de “antimendigo”. As aspas são uma generosidade minha. Os jornais as dispensam, tomando a palavra em seu sentido supostamente denotativo. Ora, um “banco antimendigo” faz supor a existência de um “banco filomendigo” — ou “pró-mendigo”, certo? E qual seria ele? Suponho que […]
Ademais, quem começou a classificar intervenções na cidade de ação “antimendigo” foram o padre Júlio Lancelotti, ativo cabo eleitoral de Marta Suplicy, o PT e as ONGs ligadas ao partido. Quando os jornais assumem o termo sem aspas, estão, na verdade, adotando a terminologia de uma militância política.
O que defendem a Folha e o Estadão? Que o poder público crie facilidades para que os mendigos durmam nos baixos de viaduto e nas praças? Por que não explicitam a idéia num editorial, daqueles bem sólidos e repolhudos?
Quero me fixar um pouco no texto de ontem da Folha. Não estou satanizando nem pegando no pé de ninguém. Falo aqui, não se esqueçam, da tal “Weltanschauung” (ver abaixo). Seguem trechos do jornal, em vermelho, e comentários meus, em azul:
Reinaugurada ontem, a praça da República, no centro de São Paulo, recebeu bancos antimendigos -de madeira, com divisórias de ferro que impedem que uma pessoa se deite. O resultado, porém, é que, agora, os moradores de rua passaram a dormir no chão da praça.
Viram? Passou mesmo a existir um banco anatomicamente definido como antimendigo. Passou a ser um objeto — mais que isso: uma categoria. O que o torna “antimendigo”? O texto explica: eles “impedem que uma pessoa se deite”. E aí vem uma adversativa curiosa: “o resultado, porém, é que…” Por que “porém”? Não há na seqüência oposição, mas (no texto do jornal ao menos) uma relação de causa e efeito. É justamente na omissão dessa cadeia de raciocínio que mora o problema: caso se admita que o mendigo só dorme no chão PORQUE não pode dormir no banco, ou bem se conclui que banco não é mesmo lugar para dormir (nem o chão…), ou se assume que os bancos devem ser privatizados pelos mendigos. Como não se quer fazer nem uma opção nem outra, mas se quer manter a acusação, então aparece esse estranho “porém”. Reitero: nem se trata de um mecanismo consciente. É só a linguagem traindo uma visão de mundo entranhada.
A praça foi reinaugurada ontem pelo prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (PFL), e ganhou também novos pisos, lagos e canteiros bem-tratados. A reforma total da praça custou 3,1 milhões.
É a única concessão ao que é do interesse geral dos munícipes e usuários da praça. Urge voltar aos mendigos…
Mas o que mais chama a atenção são os novos bancos, que substituíram os tradicionais de madeira ou concreto, onde, antes, casais de namorados podiam sentar abraçados.
Se um banco em que mendigo não pode deitar é “antimendigo”, um em que namorados não podem namorar é “antinamoro”, certo?
A prefeitura diz que o objetivo não era impedir mendigos de dormir na praça, inaugurada em 1905. “[os bancos] Foram escolhidos porque são mais adequados para a arquitetura da República”, afirma Andrea Matarazzo, secretário municipal das Subprefeituras e subprefeito da Sé.
Digam-me: que sentido faz o jornal assumir, como dado referencial, que o banco É ANTIMENDIGO e depois ouvir uma autoridade? Ela acaba entrando na reportagem como boi de piranha.
Na tarde de ontem, pouco antes das 14h, a Folha observou três moradores de rua estirados sobre pontos do novo passeio. “Ficou pior. Antes, eles se deitavam nos bancos, que não ficavam no meio do caminho. Agora a gente tem de passar por cima”, dizia a vendedora Rosa Amélia Pires, 28, que elogiou as outras mudanças no local. “Ficou tudo mais bonito, tirando os mendigos.”
Ô, Rosa Maria… Vejam que ela gostou da praça. Mas, da forma como entrou na reportagem, entendemos que tudo estaria perfeito se os mendigos estivessem dormindo nos bancos.
A secretária Madalena Pinheiro, 32, também reclamava. “Não adianta colocar esses bancos porque, além de reduzir o espaço para a gente descansar, não resolve o problema [da retirada dos moradores da praça]”, comentava. “Era preciso mandá-los para um abrigo.”