O pensamento que liberta ou o sentimento que esmaga? Ou: “”Tira o pé do chão, galeeera, que lá vem o Virundum…”
Estive uma única vez, pessoalmente, com o ministro Ayres Britto, que assumiu nesta quinta, até novembro, a presidência do STF. Foi num debate sobre liberdade de expressão. Britto é um homem afável, simpático, doce no trato. Mas suas metáforas me deixam um pouco desencantado porque traduzem, não raro, um entendimento do papel da Justiça e […]
Estive uma única vez, pessoalmente, com o ministro Ayres Britto, que assumiu nesta quinta, até novembro, a presidência do STF. Foi num debate sobre liberdade de expressão. Britto é um homem afável, simpático, doce no trato. Mas suas metáforas me deixam um pouco desencantado porque traduzem, não raro, um entendimento do papel da Justiça e do juiz que, francamente, não é o meu.
Mais uma historinha pessoal. Desentendi-me pouquíssimas vezes com jornalistas com os quais trabalhei. Numa das raras, o enrosco se deu porque um repórter iniciara um perfil sobre uma determinada personalidade assim: “Ela tem um terceiro olho!” E se seguiam considerações subjetivas sobre o dito-cujo. Que diabos afinal era aquilo? A mim cabia editar o texto — o que também quer dizer aprovar ou reprovar. Fiz uma ironia não muito elegante sobre o tal terceiro olho, da qual me arrependo, que deixou o autor muito bravo. Sim, alguém poderá até indagar se acreditar na Santíssima Trindade não é mais complicado. Aceito a provocação e respondo: “Até pode ser”. Mas não costumo abrir meus textos recorrendo a esse conceito. Também não pretendo que esse valor seja definidor do destino de terceiros…
Li a íntegra do discurso de Britto. Ali está, nem poderia ser diferente, a defesa da Constituição e até um convite aos Três Poderes para que façam um pacto em sua defesa. É claro que alguém só se lembra de propor algo parecido porque enxerga, então, que a Carta Magna tem sido — e tem — reiteradamente desrespeitada, não é? Ocorre que, com alguma frequência, isso se dá também no Supremo…
Como poeta, Ayres Britto é um excelente ministro. O problema é que, como ministro, ele se comporta, às vezes, como poeta. E aí as coisas se complicam. O trecho em que aparece o tal “terceiro olho” mercê ser lido com cuidado. Vejam:
X – entender, o juiz, que é justamente desse casamento por amor entre o pensamento e o sentimento que se pode partejar o rebento da consciência. Terceira categoria neural que nos unifica por modo superlativo ou transcendente dos polos primários do sentimento e do pensamento. Consciência que já corresponde àquele ponto de equilíbrio que a literatura mística chama de “terceiro olho”. O único olho que não é visto, mas justamente o que pode ver tudo. Holisticamente, esfericamente, sabido que no interior de uma circunferência é que se fazem presentes todos os ângulos da geometria física, e, agora, da geometria humana. Consciência, em suma, que nos leva a transitar do sensível para o sensitivo e do humano para o humanismo. E que nos habilita a fazer as refinadas ou sutis distinções entre reflexão e percepção, entendimento e compreensão, conhecimento e sapiência, segurança e justiça, Estado e sociedade civil, sociedade civil e nação. Esta última como realidade tridimensionalmente temporal, porquanto enlaçante do passado, do presente e do futuro do nosso povo. Laço que prende a ancestralidade, a contemporaneidade e a posteridade da nossa gente.
Vênia máxima, eu não sei o que “literatura mística” designa ou significa. De qual misticismo? Do que ele está falando? Também não compreendo o que quer dizer quando afirma que juiz deve casar “pensamento com sentimento”. À área do pensamento, entendo, compete o ordenamento jurídico do país, ainda que, muitas vezes, ele possa ser contra o “meu” sentimento. Como, no Brasil, somos 200 milhões de “sentires”, a única via democrática de resolução de um conflito é mesmo o… pensamento! No caso aplicado, a lei! Ou deve um juiz temperar o pensamento, onde está a Justiça, com o sentimento, ainda que, com isso, ela se torne um pouco menos justa? Em que isso seria distinto do arbítrio?
Foi mais o sentimento do que o pensamento que levou o ministro Ayres Britto a elaborar, por exemplo, um relatório que considerei meio alucinado sobre Raposa Serra do Sol. Trata-se daquela decisão do Supremo que só contribuiu para derrubar a produção de arroz em Roraima e para jogar brancos e índios num favelão de Boa Vista, expulsando da terra famílias que lá estavam havia muitas gerações. Ocorre que a poesia inundou a alma do ministro Britto. No caso da união civil de homossexuais, de forma que eu saiba inédita, o STF, com o apoio entusiasmado do ministro, relator da matéria, decidiu contra o texto da Constituição.
Considero as intervenções de Britto excessivamente porosas aos chamados “grupos de pressão” que se organizam, muitas vezes, para assaltar a Constituição, não para que seus fundamentos sejam aplicados.
Decisões de juízes interferem na vida das pessoas de maneira definitiva. Aplicar a lei democraticamente instituída na sua literalidade — ou o mais próximo disso quando, por qualquer razão, ela é omissa —, é uma garantia de liberdade. O inferno, nesses casos, está justamente na subjetividade, que pode provocar grandes injustiças — ainda, ministro Britto, que sejam “injustiças influentes”, de “boa reputação”. Leio este outro trecho do seus discurso e o considero francamente perturbador:
“Ninguém entra duas vezes nas águas de um mesmo rio”, pois o fato é que na vida tudo muda, menos a mudança. Só o impermanente é que é permanente, só o inconstante é que é constante, de sorte que a única questão fechada dever ser a abertura para o novo. Embora não devamos confundir o novo com o fashion. Se tudo é incerto, é porque é certo mesmo que tudo seja incerto. Se tudo é teluricamente inseguro, que nos sintamos seguros na telúrica insegurança das coisas. É o nosso lado emocional, feminino, artístico, amoroso, sensitivo, corajoso, por saber que quem não solta as amarras desse navio de nome coração corre o risco de ficar à deriva é no próprio cais do porto. Que é a pior forma de ficar à deriva. Lado do cérebro mais sanguineamente irrigado, a ciência comprova isso, o lado feminino, e que tanto nos catapulta para o mundo dos valores (bondade, justiça, ética, verdade e estética, sobretudo), quanto nos livra das garras da mesmice. Com a virtude adicional de abrir os poros do pensamento ou inteligência dita racional para que ela se faça ainda mais clara, mais profunda e mais alongada no seu funcionamento.
Não faltará quem se comova, mas eu prefiro esse conceito, como é o caso, num soneto de Camões. Eu não tenho dúvida de que foi esse lado mais “sanguineamente irrigado”, então, que levou Britto a fazer aquelas digressões indianistas no caso de Raposa Serra do Sol. O seu coração poético de aqueceu. As pessoas de verdade, ministro, foram jogadas na miséria. Melhor, então, o pensamento que liberta, ainda que contra as vagas influentes, do que o sentimento que esmaga.
Prefiro ficar com a parte do discurso que declara a supremacia da Constituição, sem temperos e espaços para digressões poéticas. Até porque, quando se entra nesse terreno, abrem-se as portas também para a restrição de gosto. E a poesia de Britto, com todo o respeito, não é boa.
Quanto ao Hino Nacional cantado, com alguns tropeços, por Daniela Mercury, o que posso dizer? “Tira o pé do chão, galeeera, que lá vem o Virundum…” O ministro deveria ser mais ousado. Hino com Daniela me parece convencional demais!. Corajoso seria ter chamado “Os Avassaladores”…