“O papa Francisco é o mesmo Bergoglio que disse para defendermos o nascituro ainda que nos perseguissem e matassem”
Tenho um amigo, jornalista dos bons, que me envia uma mensagem pessoal — e só por isso não vou revelar o nome dele — sobre a entrevista do papa, que foi, já escrevi aqui, miseravelmente distorcida num particular: a questão do aborto. Reproduzo abaixo o conteúdo de sua mensagem. Ele faz uma leitura da entrevista bem […]
Tenho um amigo, jornalista dos bons, que me envia uma mensagem pessoal — e só por isso não vou revelar o nome dele — sobre a entrevista do papa, que foi, já escrevi aqui, miseravelmente distorcida num particular: a questão do aborto. Reproduzo abaixo o conteúdo de sua mensagem. Ele faz uma leitura da entrevista bem mais benigna do que a que fiz (ainda que eu reconheça a absurda distorção). É evidente que torço para ele estar certo. Esse meu amigo é um estudioso dos assuntos da Igreja; são palavras de quem conhece a doutrina. Vale a pena ler.
*
“Reinaldo, tudo bem?
Acompanhei todo o vendaval em cima da entrevista do Papa. Quando eu tinha lido, num site português, já imaginei que viria problema.
Eu estou com a impressão de que o papa está com um objetivo firme de que a Igreja deixe de ser pautada pela imprensa. Convenhamos, somos nós, os jornalistas, que ficamos o tempo inteiro perguntando a padres, bispos, ao papa, sobre aborto, casamento gay, contracepção (e eu acrescentaria o celibato sacerdotal), como se a Igreja fosse só isso. Quem tem obsessão por esse tema é a imprensa, não a Igreja, mas, muitas vezes, a Igreja acaba fazendo o jogo da imprensa. Acho que é isso que o Papa está tentando combater.
Esse trecho do aborto é a resposta a uma pergunta sobre o cuidado pastoral com as pessoas que vivem nessa situação, como gays católicos – digo os “que buscam a Deus com sinceridade”, como dizia o papa no avião, não os militantes que tentam enfiar sua convicção goela abaixo da Igreja – ou mulheres que abortaram (veja que o papa fala de uma mulher que um dia abortou “e está sinceramente arrependida”, e o que o confessor faz nesses casos?). Acho que a afirmação do papa tem de ser colocada nesse contexto: ele está falando muito mais do cuidado pastoral com os indivíduos, e não tanto da atuação pública da Igreja. E aí ele responde que, muito mais do que ficar martelando as questões do aborto e da homossexualidade em cima dessas pessoas, é preciso comunicar o amor de Cristo. Se a pessoa se arrepende sinceramente, a prioridade é que ela se sinta perdoada e amada, e não ficar remoendo o tamanho do erro que ela cometeu. Acho que a chave da questão está nesse trecho aqui:
“Uma pastoral missionária não está obcecada pela transmissão desarticulada de uma multiplicidade de doutrinas a impor insistentemente. O anúncio de carácter missionário concentra-se no essencial, no necessário, que é também aquilo que mais apaixona e atrai, aquilo que faz arder o coração, como aos discípulos de Emaús. Devemos, pois, encontrar um novo equilíbrio; de outro modo, mesmo o edifício moral da Igreja corre o risco de cair como um castelo de cartas, de perder a frescura e o perfume do Evangelho. A proposta evangélica deve ser mais simples, profunda, irradiante. É desta proposta que vêm depois as consequências morais.”
Ele está falando de pastoral missionária, então é claramente a questão do anúncio do Evangelho às pessoas, e o principal é anunciar o amor de Cristo pelo homem (“o anúncio do amor salvífico de Deus precede a obrigação moral e religiosa”, ele diz). A “plataforma moral” da Igreja, por assim dizer, é consequência disso. Só que essa plataforma precisa ser erguida em cima de uma base sólida que é criada justamente por essa convicção de que Deus existe, ama o homem, quer sua felicidade e enviou seu Filho para nos salvar. Sem isso, ela é um “castelo de cartas” sem fundamento e um mero conjunto de regras impopulares.
No começo do pontificado o papa criticou aqueles que queriam reduzir a Igreja a uma “ONG piedosa”, quando se retirava Jesus do centro. Agora, eu acho que ele está criticando aqueles que pretendem reduzir a Igreja a um “grupo de pressão moral”, como se a essência da Igreja fosse combater o aborto e o casamento gay, em vez de ser o canal pelo qual a graça de Deus se comunica ao mundo.
O papa Francisco é o mesmo Bergoglio que disse para defendermos o nascituro ainda que nos perseguissem e matassem. E, como papa, pouco antes de vir ao Brasil ele tinha mandado uma mensagem aos católicos irlandeses sobre a defesa da vida. Não acho que ele esteja pedindo para sermos omissos na arena pública, porque ele mesmo não o é. O que ele quer é que não percamos de vista que, na hora de lidar com as pessoas, elas precisam primeiro entender a bondade e a misericórdia de Deus, para serem capazes de compreender a gravidade deste ou daquele ato.
Um grande abraço”