O meu corvo vai bicar o seu coelho
Um corvo, como vocês sabem, grasna. Um coelho chia ou guincha. Então vamos lá: o meu corvo vai bicar o seu coelho, hehe. Marcelo Coelho escreveu ontem um artigo na Folha que tem de começar a ser descontruído pelo título. Chama-se “Macarthismo de miudezas”. É uma referência ao senador americano Joseph McCarthy, que conduziu nos […]
Marcelo Coelho escreveu ontem um artigo na Folha que tem de começar a ser descontruído pelo título. Chama-se “Macarthismo de miudezas”. É uma referência ao senador americano Joseph McCarthy, que conduziu nos Estados Unidos Comitê de Atividades Antiamericanas (House Un-American Activities Committee). Por ”atividades antiamericanas”, entenda-se a infiltração comunista no país na década 1950, que era real, especialmente no meio artístico. Como Coelho fará uma defesa oblíqua do governo Lula, entende-se que o presidente é uma pobre vítima de esquerda, perseguida implacavelmente pela direita. Mais: o título sugere que o autor é contra “macarthismo (na grafia por ele escolhida) de miudezas”. E “macarthismo de grandezas”? Pode? Reproduzo, como faço às vezes, em vermelho os guinchos de coelho. O meu grasnar segue em azul.
LEIO, ESTARRECIDO, as últimas notícias de Brasília. Determinado ministro gastou R$ 8 comendo tapioca. Usou-se cartão corporativo para reformar uma mesa de sinuca.
A Radiobrás gastou R$ 36 numa loja de colchões. A explicação: era lona para cobrir um estúdio móvel nas transmissões do Carnaval.
Fico estarrecido, mas não com as despesas. Não com a chamada farra dos cartões corporativos. Fico estarrecido com a importância que se dá a tudo isso.
Não posso entender como um país se esquece de todos os seus problemas, e até mesmo de casos graves de corrupção, para discutir o fato de que o ministro dos Esportes usou um cartão corporativo para comer tapioca no café da manhã.
É… Dize-me com que te estarreces, e te direi quem és. Coelho, pelo visto, lê as “notícias de Brasília” com mais incompetência do que lê Chesterton. Os chamados gastos emergenciais do governo Lula somam R$ 177 milhões (e não R$ 75,6 milhões), e só é possível saber o destino de 11% desse montante. Ao escolher a tapioca, o articulista guincha como um coelhinho perdido para disfarçar seu óbvio alinhamento com o governo Lula.
Quem usou a imagem da tapioca para desmoralizar qualquer investigação foi o ministro Paulo Bernardo. Atenção: Coelho é membro do Conselho Editorial da Folha. Acredito que, nas reuniões, defenda esse ponto de vista. Em vez de opinar que o jornal tente saber o destino de R$ 157,53 milhões, talvez diga: “Deixem essa tapioca pra lá”.
Mas não o confundam com um leniente… Ele lastima que “o país” se esquece “dos graves casos de corrupção” Que tal ler ao menos a Folha, Marcelo Coelho? Sua coluna é ofensiva a seus colegas de reportagem. Coelhinho, se eu fosse como tu…
Abusos certamente existem. O maior deles foi o da ministra da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, que teve de deixar o cargo. Fez gastos em free shop e mesmo nas férias recorreu ao dinheiro público para o aluguel de carros.
Não sei que espírito mau se apossou do articulista. Ele também quer usar a ex-ministra Matilde como fusível queimado. E ponto final. Viram? Não sabemos como foram gastos R$ 157, 53 milhões, mas ele assegura que o “maior” abuso é aquele cometido pela “enquanto mulher e enquanto negra”. É? Já analisou todos os outros gastos? Já apurou tudo o que tem para ser apurado? Já pode responder por que o IBGE gastou R$ 37,5 mil no Rio Grande do Sul e mais de R$ 1,5 milhão no Ceará? Que pena! Ela parece ser perfeita no papel de boi de piranha, não é, Coelho?
Foi fácil verificar isso no Portal da Transparência.
Mais uma tese governista disfarçada numa frase aparentemente objetiva. Ele está afirmando que só se soube da irregularidade por causa do tal portal, pelo qual deveríamos, em vez de críticos, ser gratos.
Mas, como em toda corrida do ouro, o garimpo de notícias logo se esgota, e irregularidades microscópicas são esquadrinhadas como se estivéssemos diante de um novo mensalão.
Huuummm. Neste momento, sente-se o palpitar do gênio. Coelho tem agora uma nova fronteira do escândalo: o mensalão. Tudo o que for menos do que aquilo, pelo visto, merece, no máximo, uma nota de rodapé. Como já escrevi tantas vezes, o PT tornou os seus acólitos muito exigentes em matéria de escândalo: nada de miudezas.
Mas me parece nítida a desproporção entre o que foi aquela crise e o caso dos cartões. O mensalão envolvia bancos, publicitários, partidos e governo num sistema de financiamento político que tinha sérias repercussões do ponto de vista institucional e ideológico. Trazia a ameaça da perpetuação no poder do “núcleo duro” do PT e resultou na completa derrocada do discurso ético do partido.
Viram? Coelho escolhe o mensalão como parâmetro e caso exemplar de corrupção e depois passa a demonstrar que o caso dos cartões não é um mensalão. Se não é, a indignação deveria ser menor. Pior do que isso: “ele” está falando “da” imprensa. Está recomendando a seus colegas jornalistas que deixem esse caso pra lá.
Uma CPI para investigar os gastos da cozinha presidencial e dos seguranças de Lurian talvez chegasse, nunca se sabe, a um grande escândalo. Mas, como os gastos de Fernando Henrique seriam também investigados em represália, tudo já se arranja para evitar o aprofundamento da questão.
Aqui, temos a argumentação dolosa e a terceira “petistada” explícita. Se a CPI pode chegar “a um grande escândalo”, como ele diz, então não pode ser evitada. Mas por que ele a combate?
E, claro, lá está FHC…Fica parecendo que foi o ex-presidente quem pôs um freio na apuração.
O rumo das investigações tende, assim, a desembocar em algum funcionário administrativo de pouca importância, que pagará pelo erro de ter gasto dinheiro público em coisas como o forro de uma mesa de sinuca.
Se ao menos a mesa de sinuca fosse dele… mas estava lá no próprio ministério! E o que dizer do reitor de uma universidade federal que teve de vir a público, com direito a fotografia e entrevista, simplesmente porque levou uma comitiva de convidados estrangeiros a um restaurante de luxo? Só o mais extremo patrulhamento moralista haveria de tratar o episódio como um escândalo nacional.
Pobre tolo!
Vá ler jornal, Marcelo Coelho!
Pare de chiar ignorâncias!
Deixe de ser ligeiro e irresponsável com o trabalho de seus colegas!
Ninguém tratou o caso do “restaurante” como escândalo nacional. Isso é delírio seu. Escândalo nacional é o crescente gasto da Presidência da República, gasto secreto, em cuja prestação de contas já se encontraram notas frias.
Coelho quer fazer crer que não existem mais de R$ 157 milhões em gastos que ainda aguardam explicação.
Com esse macarthismo das miudezas, que pode atingir qualquer administração, petista ou tucana, surge mais um fator de paralisação das atividades do Congresso, que devia estar discutindo a reforma política e a tributária.O rapaz vai falando por falar… A essa altura do texto, já não tem mais nada a dizer. Persegue só o número de toques. A reforma política, na prática, já foi rejeitada — uma parte dela foi feita pelo TSE. A que a reforma tributária ele se refere? O que impede o governo de apresentar um projeto consistente? O debate sobre os cartões? Que coisa ridícula!
No fundo, talvez seja uma forma de fugir de um debate complexo, que ninguém se dispõe muito a acompanhar.
E talvez também exista, por trás do escândalo dos cartões, uma longa e envergonhada história de amor.
Tucanos e petistas possuem muito mais pontos em comum do que de discordância. Uma prévia desse complexo filme francês está sendo ensaiada no Estado de Minas Gerais, com o governador Aécio Neves e o prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel.
Por que ele entrou nesse caso? Porque precisava preencher o rombo da página. Parece estar recorrendo às supostas identidades entre os partidos para provar que tucanos e petistas, de fato, são iguais. Como se chegou da constatação da irrelevância do caso dos cartões à aliança entre petistas e tucanos mineiros? Sei lá: coelho não anda, pula.
Qualquer aproximação política entre PT e PSDB se reveste, entretanto, das cores de um escândalo inconfessável. Programas de governo semelhantes encontram bases sociais em franca divergência; os eleitores de um partido têm ojeriza aos políticos do outro, e a disputa eleitoral em cada cidade não obedece ao consenso programático existente no plano federal.
Dada a falta de nomes fortes no PT, nem chegaria a ser ilógico se uma candidatura de Aécio Neves tivesse um matiz mais governista do que de oposição. O próprio Serra discorda menos de Lula do que a “banda de música” que derrotou a CPMF.
”Banda de música” é como era chamada a antiga UDN, a de Carlos Lacerda, o corvo que granava. Na outra ponta, havia o PTB, daqueles que ruminavam… A verdade é que Marcelo Coelho acredita que só existe PT: um mais à esquerda, o petismo propriamente dito, e outro mais à direita: os tucanos. Aqui, um recado para muitos leitores de direita: cuidado com esta tese! Como a gente vê, ela é bastante popular entre os que querem dar mais poder aos petistas em vez de ser justos e severos com os tucanos. Mas como foi que viemos parar aqui mesmo? Perguntem a Marcelo Coelho.
O conflito entre PSDB e governo tem, entretanto, de continuar, ao preço de escândalos e denúncias de pouca relevância, mas de fácil consumo na opinião pública. Cria-se então uma CPI em torno de trocados, de tapiocas e colchões.
Ah, lembrei. Coelho está atribuindo ao PSDB as denúncias, o que é falso. Já a tentativa de igualar os cartões de débito de São Paulo à farra dos cartões de crédito do governo federal, bem, isso partiu, sem dúvida, do petismo, embora certa imprensa tenha tentado lavar a fonte. Isso, claro, não está no artigo.
Trata-se do clássico caso em que os agentes de um processo político perdem a racionalidade e tornam-se presos a um discurso em que já não acreditam.
Colchões? Mesas de sinuca? Jantares à luz de velas? As vestais enrubescem. Nunca foram disso.
Estamos de volta à tese de Paulo Bernardo. Como se vê, ele acha que o enrubescimento daqueles a quem chama “vestais” é pura hipocrisia, já que “nunca foram disso”. Coelho quer que todos fiquemos como ele próprio: já não cora mais.
É o artigo mais indecoroso da grande imprensa em muito tempo. Faz a apologia da lambança sob o pretexto de ser severo e propor grandes questões. Nada mal para quem começou combatendo o “macarthismo das miudezas”. Terminou na impunidade das grandezas.
Ah, sim: o rapaz deveria ler o seu próprio jornal. Noticia-se lá que o TCU encontrou notas frias até nas viagens do presidente. Coelhinho, se eu fosse como tu, tirava a mão do olho.