O jornalismo da cesta básica
O Jornal Nacional prestou ontem um óbvio desserviço à informação na reportagem em que tratou de um decreto do governo de São Paulo que revoga um incentivo fiscal para produtos da cesta básica. Conforme informei aqui em nota às 16h57, caso o governador José Serra não fizesse o que fez, o Supremo Tribunal Federal teria […]
O governo de São Paulo, na verdade, agiu de forma preventiva. Suspendeu o incentivo para reeditá-lo em seguida. Mas a chamada do Jornal Nacional não fez por menos: “Medida de Serra deixará produtos da cesta básica mais caros em São Paulo”. Não deixará. Porque nem mesmo haverá tempo para isso. Vejam só: o governador poderia deixar o barco correr, o Supremo acolheria a reclamação de Requião, e a redução de impostos iria para a cucuia, o que seria melhor para os cofres do Estado. E o governador diria: “A culpa não é minha”. E não seria mesmo. Como decidiu agir para evitar a elevação dos preços, então apanha. Seguem em vermelho trechos da reportagem do JN, seguidos de comentários meus, em azul:
O governador de São Paulo, José Serra, do PSDB, revogou um incentivo fiscal que reduzia os preços da cesta básica no estado – e que durou seis anos. Hoje, o governador alegou razões jurídicas – e disse que a medida será por pouco tempo. São vários os produtos que vão chegar às prateleiras dos supermercados de São Paulo mais caros a partir de agora.
O verbo “alegar”, com a devida vênia, não serve. Quem alega inocência é bandido, por exemplo. Ainda que, na pura denotação, seja um verbo adequado. Na prática jornalística, no entanto, alega quem está tentando justificar o injustificável. A questão jurídica existe. A notícia é outra: ou o governo de SP faria o que fez, ou os incentivos seriam extintos, sem chance de retorno. A menos que o Jornal Nacional tenha outra saída. Tem?
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A Associação Paulista dos Supermercados calculou quando essa decisão pode custar. “Um aumento em torno de 5% a 6% para o consumidor final desse tipo de produtos”, diz Martinho Paiva Moreira, da Associação Paulista de Supermercados.
O sr. Martinho Paiva, vice-presidente da Apas, precisa se informar melhor. O aumento de impostos só teria vigência no ano que vem. Basta ler o artigo 150 da Constituição. A imprensa também deveria saber disso. Ainda que houvesse tempo para o reajuste de preços chegar ao consumidor — não haverá —, não seria agora. Ao dar curso à fantasia, Apas e JN estimulam os malandros, que querem pretextos para aumentar preços. Mais: a opinião tecnicamente furada de Paiva é o que é: só uma opinião. Não autoriza a chamada afirmativa do jornal. Ou justifica? Ele diz que haverá aumento de preços. Serra, como se verá, nega. Por que a palavra de Paiva vale mais? Aí aparece o governador falando, o “outro lado”.
“O motivo foi jurídico porque outros estados entraram no Supremo Tribunal Federal contestando esses baixos impostos de São Paulo. Mas uma coisa eu garanto. Nós vamos tomar providências para que não haja acréscimo, não haverá nenhum motivo para que preços de produtos da cesta básica sejam aumentados”, garantiu o governador de São Paulo José Serra.
A fala do governador já estava obviamente prejudicada pela chamada e pelo verbo “alegar”. Ficou só parecendo uma tentativa de truque. Caso Serra não volte a reduzir os impostos, passada a pendenga jurídica, aí, então, será o caso de pegar no seu pé.
A Folha de S. Paulo também entrou na história. Depois que se noticiou neste blog a questão jurídica, escreve o jornal: “Segundo a Folha apurou, o governo paulista espera restabelecer os benefícios ainda neste mês e revogou o decreto para evitar que o Supremo Tribunal Federal julgasse, no dia 2 deste mês uma Adin do Paraná (…)”. Bem, quem apurou primeiro fui eu, não a Folha. Mas isso é o de menos. O importante, do ponto de vista jornalístico, é que também o jornal saiu com o seguinte título: “Empresas ameaçam elevar preço após fim de incentivo”. A reportagem traz todos os dados relevantes, porém numa ordem estranha, que acaba diluindo aquele que é, entendo, o “lead” da reportagem.Se alguém, dado o quadro jurídico de uma derrota certa dos incentivos, tinha ou tem alguma idéia melhor, é o caso de revelá-la, para que saiamos todos da ignorância. Não sendo o caso, vamos parar de dar vazão aos terroristas do aumento de preços — o que, de resto, seria inconstitucional porque, ainda que a suspensão fosse permanente, não teria efeitos imediatos.