O caso Gracie e as culpas
Robson Gracie, o pai de Ryan Gracie, tem razão. Há coisas que costumam acontecer só no Brasil. Um rapaz fortão, notório criador de caso, armado com uma faca, rouba um carro, bate o veículo, tenta roubar uma moto, arruma briga, é imobilizado por 30 pessoas e acaba preso. Muito bem. Qual é a obrigação da […]
Ryan morreu na cadeia, e agora será preciso saber por quê. A família acusa o médico que o atendeu por causa de medicamentos que lhe foram ministrados e diz que a Polícia foi negligente. O tratamento que os familiares lhe dispensam na morte talvez explique o seu comportamento em vida — não me refiro a sua atividade no ringue. Aquilo, parece, é um trabalho. Por mais estranho que pareça. Refiro-me a seu comportamento no dia-a-dia: ele gostava de brigar. Vi uma entrevista do pai do lutador logo depois da prisão. Disse, então, a coisa certa: se ele errou, tinha de pagar. Com o filho morto, compreende-se a sua revolta. Mas há um limite nas coisas. Antes, farei uma pequena digressão.
Síndrome do pânico
Quero desfazer um mal-entendido estúpido. Atribui-se parte do comportamento violento do rapaz à síndrome do pânico. É uma besteira gigantesca. Disso eu entendo porque tive a doença. Em crise, é impossível roubar um pirulito de uma criança. Há uma pressão quase insuportável no peito, acompanhada de uma sensação de estrangulamento. O coração dispara — os batimentos cardíacos podem chegar a 180 por minuto. Falta o ar. A gente respira muito e com dificuldade, o que leva à hiperventilação, que piora o quadro. Sua-se frio, pouco importa a temperatura. Há formigamento nos braços. A sensação é de morte iminente. Para usar o clichê, é o tipo de coisa que não se deseja nem a um inimigo — vá lá, ao inimigo nº 1 talvez…
Raramente o ataque acontece em casa. Eu, por exemplo, nunca tive. Há uma estranha relação entre ambientes abertos, amplos demais ou cheios de gente, e os ataques — é a “agorafobia”. Não há aviso prévio. Pode acontecer a qualquer momento. Síndrome do Pânico não tem nada a ver com medos específicos, com fobias: de avião, de barata ou de cachorro. Aliás, é o traço mais perverso da doença: sabe-se que está ligada a um desequilíbrio de determinados neurotransmissores, mas não se conhecem a sua etiologia e fatores condicionantes. Tenho medo de avião — muito medo. Mas jamais temi ter um ataque de pânico numa aeronave. Tinha a certeza de que ele não viria. Eu estava em prontidão. Com o tempo, a pessoa se torna reclusa justamente porque cansa de ser surpreendida pelas crises. Acaba-se concluindo que o melhor é ficar em casa. As terapias comportamentais ajudam. Mas só os antidepressivos resolvem. A crise dura uns 20 minutos — vinte minutos do mais absoluto terror. Depois passa. E se fica imprestável o resto do dia.
Há poucas certezas sobre o pânico. Uma delas é esta: a maconha predispõe o consumidor a ter crises. No meu caso, quando se fechou o diagnóstico — e isso em 1986 —, a primeira pergunta que o médico me fez foi esta: “Fuma maconha, ainda que esporadicamente?” Não. Pacientes que consomem a droga e têm a doença acabam abandonando o capim. O que sustento é que a crise que levou Ryan a ser preso nada teve a ver com a síndrome. Aqueles sintomas, convenham, estão mais ligados à overdose de drogas. Não existe crise de pânico que dure horas a fio. Fim da digressão.
Ao caso
Quem chamou o médico Sabino Ferreira de Farias Neto foi a família, não a polícia. Até onde sei, não há nada que o impeça. O Condepe (Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana) questionou o procedimento. Faria o mesmo se as autoridades tivessem proibido o exame. Como há uma possibilidade razoável de que Ryan tenha morrido em razão de overdose, a proibição estaria sendo agora criticada.
Flávia Gracie, irmã de Ryan, disse ter chamado o médico às pressas para que ele atestasse a dependência química do lutador com o propósito de que ele fosse imediatamente internado. Foi feita a solicitação? Se fosse, haveria a necessidade de uma ordem judicial. O que me parece é que a família se mobilizou depressa para caracterizar uma penca de fatores atenuantes, que contassem em favor de Ryan posteriormente. “No dia seguinte, ao saber da morte, ele [o médico] me pediu desculpas. É um safado, um vendido”, diz Flávia.
Ainda segundo a irmã do lutador, Farias Neto passou em sua casa, na madrugada de sábado, para cobrar a consulta e pedir que enviasse R$ 100 para o carcereiro para que o lutador fosse bem tratado na cadeia. “Paguei na mesma hora. Ele disse que as coisas funcionam assim mesmo nessa delegacia (91.º Distrito Policial ). E sugeriu que eu mandasse R$ 2.500 para cada delegado.” Em depoimento, o médico negou que algum policial lhe tenha pedido propina. Disse apenas ter tratado da questão com Flávia como hipótese. Mesmo assim, a corregedoria investiga o caso.
Todo mundo merece tratamento justo e digno segundo a sua condição. É compreensível a revolta da família Gracie. Mas também fica evidente a tentativa de inverter os sinais da equação. Quem estava transgredindo as regras era Ryan. As acusações feitas à polícia terão de ser, é claro, apuradas. Mas desconfio um tanto que delegados dissessem a um médico o seu “preço”. Ou que tenha havido uma conversa com o “carcereiro”.
“Lamento mais uma vez esse país. Um pseudomédico, um canalha, matou meu filho. As coisas precisam mudar. Dá vontade de entrar no vaso e dar descarga. Nós vencemos o mundo inteiro. Em qualquer lugar, somos valorizados; aqui somos os escárnios”. É Robson, o pai, falando. Sua dor explica, mas não justifica o equívoco. Ele ainda não sabe se foram os remédios que mataram o rapaz. Ademais, o que ele queria? Um tratamento de herói para quem acabara de roubar um carro, de ferir um homem e de tentar roubar uma moto?
Nem o médico nem a polícia levaram Ryan a consumir drogas. Foi uma escolha pessoal. E, até onde acompanho, seguiu-se a lei, e todos atuaram para proteger o preso. Nada se fez à sua revelia ou de seus familiares. O país não tem nada a ver com isso, sr. Robson. Ryan fez suas próprias escolhas, como fazem todos aqueles que consomem drogas. A culpa, meu senhor, eu lhe asseguro, não é nossa. Em primeiro lugar, é, sim, de quem consome. É justo que se investigue a atitude do médico. Mas convém que cada um arque com o peso de suas opções.