Morre Ruy Mesquita. Pior para o jornalismo, para o pensamento liberal e para a pluralidade
Morreu nesta terça, aos 88 anos, o jornalista Ruy Mesquita em consequência de um câncer na base da língua, diagnosticado no mês passado. Pior para o jornalismo. Pior para o que resta de pensamento liberal no Brasil — que marcha, como é sabido, nesse e em outros particulares, na contramão do mundo que interessa. Ex-diretor […]

Morreu nesta terça, aos 88 anos, o jornalista Ruy Mesquita em consequência de um câncer na base da língua, diagnosticado no mês passado. Pior para o jornalismo. Pior para o que resta de pensamento liberal no Brasil — que marcha, como é sabido, nesse e em outros particulares, na contramão do mundo que interessa. Ex-diretor de redação do extinto “Jornal da Tarde” e do Estadão, “Doutor Ruy” comandava, desde 2003, a seção de opinião deste jornal, que se manteve, sob a sua orientação, como um dos nichos da imprensa brasileira em que a clareza de ideias se casava com a excelência do texto. Os que se alinham com os fundamentos de uma sociedade democrática e de direito raramente se decepcionavam. Como será agora? Vamos ver. Enquanto “Doutor Ruy” estava lá, sempre torci para que, digamos, o ânimo do editorial iluminasse a Redação. Raramente, ainda bem!, percebi o movimento contrário.
O Estadão foi um dos principais alvos de duas ditaduras: a do Estado Novo, comandada por Getúlio Vargas, entre 1937 e 1945, quando chegou a ficar sob intervenção mesmo, e a militar, cujo prenúncio se deu em 1964, mas que chegou à sua plenitude com o AI-5, em 1968. O Estadão, a exemplo de boa parte da imprensa brasileira, apoiou o Movimento Militar que depôs João Goulart. Uma leitura honesta daquele período, evidentemente, não passará a chamar de “revolução” o que foi um golpe. Sim, foi um golpe! A questão é saber quem era e o que queria o que estava sendo golpeado.
O debate é longo — já tratei do assunto algumas vezes no blog —, mas o fato é que o ânimo que levou à deposição de Goulart era bem distinto daquele que resultou no AI-5. Chamar de “ditadura” os quatro primeiros anos do regime é pura licença história, quase poética. A partir de 1968, aí o bicho pegou mesmo. E o Estadão, que havia apoiado a deposição de Goulart, já havia se convertido num duro crítico do regime. Os, vá lá, liberais de uniforme já haviam perdido a batalha para a linha dura. Nota à margem: embora ele jamais tenha reconhecido, é claro que o apoio ao golpe, em 1964, foi um erro, o que não quer dizer que João Goulart fosse uma solução.
Sem jamais flertar com valores de esquerda, o Estadão passou a ser um duro crítico do regime e pagou caro por isso. Tornou-se um dos principais alvos dos censores. Em vez de maquiar o trogloditismo, o jornal o denunciava de maneira singular: trechos de “Os Lusíadas”, de Camões, substituíam as notícias cortadas pela censura; no “Jornal da Tarde”, entravam as receitas de bolo. Era uma forma de denunciar o que estava em curso.
Linha editorial
Em todo o mundo democrático, do pequeno Chile, bem pertinho, aos EUA, passando pelos países europeus e chegando ao Japão, há jornais alinhados com um pensamento mais liberal, dito “conservador”, e jornais mais à esquerda, que se querem “progressistas”. A isso se chama “linha editorial”, que não é apenas legítima, é também necessária. Com o afastamento de Ruy da redação, o Estadão caminhou para a indiferenciação, de sorte que os três grandes jornais brasileiros, hoje em dia, se distinguem na tipologia, no design, no destaque maior ou menor a determinadas seções, mas não nas categorias de pensamento. Ao contrário: parece haver uma espécie de competição para saber quem é mais “progressista” — ou, se quiserem, “esquerdista”, dada a esquerda possível hoje em dia. Essa esquerda já não lida mais com classes (como gostaria Marilena Chaui, cujo pensamento já morreu, embora ela finja não saber), mas com “movimentos” e “coletivos” de opinião, que vêm a ser justamente a negação de uma das aspirações do liberalismo, que é o apreço pelo indivíduo.
Doutor Ruy está morto, mas os valores que ele defendia estão vivíssimos mundo afora. Essa salada ideológica brasileira, que ele repudiava, felizmente, não faz escola nos centros relevantes de pensamento, ainda que a praga do politicamente correto tenha contaminado todas as democracias. Um amigo esteve com ele pouco antes de a sua doença ser diagnosticada. Lamentou, mas sem lamúrias, as dificuldades trazidas pela idade, mas estava absolutamente lúcido, ativo e, como sempre, indignado com a frequência com que, nestepaiz, escolhe-se o errado em vez do certo, o estado em vez do mercado, o coletivismo xucro em vez do indivíduo.
Aos 88 anos, morreu um homem moderno. Que os velhos de 40 ou 50 o tenham como exemplo e renunciem ao Brasil arcaico.