Mino Carta, o ressentido, resolve choramingar porque provei que a Capitu da Rua da Glória já estava naquela da de Mata-Cavalos!
Demorei um pouco para voltar. Estava fazendo uma entrevista. Não foi Mino Carta que me deu trabalho, não. Isso é café pequeno. A ele. * Mino Carta descobriu que algo terrível o espreita: seu passado! Bastaram uns três ou quatro textos — meus, de Fábio Pannunzio e de Demétrio Magnoli — relembrando quem ele foi, […]
Demorei um pouco para voltar. Estava fazendo uma entrevista. Não foi Mino Carta que me deu trabalho, não. Isso é café pequeno. A ele.
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Mino Carta descobriu que algo terrível o espreita: seu passado! Bastaram uns três ou quatro textos — meus, de Fábio Pannunzio e de Demétrio Magnoli — relembrando quem ele foi, o que explica quem ele é, para que o aiatolá do suposto “progressismo” viesse espernear explicações que não resistem aos fatos, aos textos que assinou e às decisões que tomou. Produziu mais uma de suas catilinárias ressentidas, abraçado a seu rancor, em que a memória seletiva é posta a serviço da glorificação do herói. E, como não poderia deixar de ser, o cavaleiro sem mácula deste gigante do jornalismo é o próprio Mino Carta.
No texto em que tenta, inutilmente, se defender das evidências, um trecho brilha como síntese, a saber: “Em outro país, um jornalista com o meu passado não sofreria as calúnias de Pannunzios, Magnolis e Azevedos, e de vários que os precederam.” Entendi. Mino chama a história de “calúnia” — palavra cujo sentido parece ignorar — para reivindicar a condição de intocável. Assim, todo e qualquer indivíduo pode e deve ser submetido ao escrutínio dos fatos e da memória, menos ele próprio. Não é por acaso que tenha sugerido aqui e ali ter sido ele o verdadeiro criador de Lula. Um acredita ter inventado o país; o outro está certo de que inventou o inventor.
Por que Mino está bravo comigo? Porque relembrei um texto seu, assinado, em que o hoje sedizente crítico da ditadura e do regime militar; o ficcionista que criou para si mesmo uma trajetória de resistência; o que se esforça para dar relevo a um heroísmo altivo e triunfante, chamava os militares de “único antídoto de seguro efeito contra a subversão e a corrupção”. E a subversão e a corrupção, por sua vez, eram realidades “nascidas e criadas à sombra dos erros voluntários e involuntários de líderes civis”. Em pleno abril de 1970, quando a linha dura já tinha triunfado, e o país vivia sob os auspícios do AI-5 havia 16 meses, Mino destaca que os militares assumiram “o poder com a relutância de quem cultiva vocações e tradições legalistas”. Quem o obrigou a escrever essas coisas? Algum general? Algum patrão? Não! Fê-lo porque o quis… Ou devemos escoimar a pena de Mino Carta das passagens que ele considera incômodas para exaltar a têmpera única do herói? Ora, senhor Mino Carta…
Não ficou por aí. Aprendemos com o mestre, em texto publicado sob o seu comando e inspiração, que não era a “Revolução que legitimava o Parlamento e, portanto, não cabia ao Parlamento legitimar a revolução”. Fiquei tentado a buscar diatribe parecida na crítica que Marx faz a Luís Bonaparte, no “18 Brumário”, mas evento bem posterior, ocorrido em terras brasileiras, explica com mais propriedade e simbolismo esse notável pensamento cartiano. Sibá Machado, então suplente de senador alçado a titular na vaga aberta com a ida de Marina Silva para o Ministério, deixou suas pegadas na história do estado de direito com uma intervenção célebre, numa CPI, que cito de memória (posso pecar por uma palavra ou outra, mas a essência é esta): “Se formos ficar com legalidade A, B, ou C, não vamos avançar. Este é um tribunal político”. Certo…
O texto de Mino Carta é diversionista. Ele finge ignorar a natureza da crítica que lhe fiz — não escrevo em nome de outros porque não represento um grupo; cada um fale por si. Ressuscitei uma pequena parte de sua produção pregressa — há muito mais — para explicar o Mino presente, este que está aí hoje, de braços dados com o poder de turno, generosamente aquinhoado com publicidade oficial, fanaticamente dedicado a depredar, segundo critérios que passam muito longe da objetividade, a reputação de lideranças da oposição, autoridades do Judiciário das quais discorda e, obviamente, o que chama, em tom de desdém, “imprensa nativa” — que vem a ser aquela que não deve mesuras ao poder porque não depende dele para existir. Bentinho, em Dom Casmurro, encerra suas reflexões com uma dúvida: saber se a Capitu da Praia da Glória, que ele julgava adúltera, já estava dentro daquela menina da infância, a da rua de Mata-Cavalos, ou se uma havia se transformado na outra em razão de algum “incidente”. O que afirmei, e é este o ponto do texto que escrevi sobre Mino Carta, é que incidente nenhum determinou as suas escolhas. O sabujo de agora já estava no sabujo de antes. Mudaram-se os tempos, mudaram-se as vontades, mas Mino mantém uma impressionante coerência. Por mais que tente romancear a própria vida, não pode mudar o que está escrito.
Gramsci
No que especificamente me diz respeito, Mino comete uma barbeiragem teórica que evidencia não só o mau biógrafo de si mesmo, mas também o mau leitor — de Reinaldo Azevedo e de Gramsci. Num dado momento de seu texto, escreve:
“No caso deste senhor Reinaldo, vale acentuar uma nossa específica diferença. Não me refiro ao fato de que eu reputo Antonio Gramsci um grande pensador, enquanto ele o define como terrorista. A questão é outra.
Ocorre que, ao trabalhar e ao fazer estágios na Europa, entendi de vez que patrão é patrão e empregado é empregado, e que para dirigir redações o profissional é chamado por causa de sua exclusiva competência. Ao contrário do que se dá no Brasil, por lá não há diretores por direito divino. (…)”
Trata-se de um apanhado de tolices. Ao atacar, certa feita, um adversário seu, Mino escreveu um troço assim para evidenciar os supostos maus bofes do outro: “Em algum lugar na área que separa o fígado do cérebro”… Pois é. Quis a natureza física que, em Mino, fígado e cérebro fossem regiões quase fronteiriças, de sorte que a bile, em sua pena, se confunde frequentemente com pensamento. Aproveitando-se, ele sim, da ignorância militante do pequeno séquito que o endeusa, publica bobagens como a que vai acima. Já afirmei muita coisa sobre Gramsci — certamente, nenhuma delas lisonjeira —, mas jamais o chamaria “terrorista” porque corresponderia a ignorar a essência do seu pensamento, como, fica claro!, Mino ignora.
Ao contrário de Mino Carta, não temo que recuperem os textos que escrevi. Eu mesmo faço isso. Num post do dia 5 de março de 2008, por exemplo, citei Gramsci. Justamente num texto sobre imprensa. Afirmei então:
“Tentar desmoralizar a chamada grande imprensa, usando, se for o caso, instrumentos secundários, como seitas religiosas ou pistoleiros aposentados, é o ato de desespero de quem tem como pauta permanente contaminar todos os controles de que dispõem a democracia e a sociedade civil para garantir a expressão de uma vontade independente da vontade ‘do’ partido. Que luta armada o quê, mané! No Brasil, a luta que eles fazem é outra: estão envolvidos com a guerra gramsciana de valores. É claro que este ou aquele pistoleiros mal sabem quem foi Gramsci. É coisa complexa demais para eles. Eles são apenas os Coriscos do cangaço oficial. Não precisam ser letrados – na verdade, seu analfabetismo chega a ser constrangedor.”
Ouso afirmar que Mino Carta — e até eu mesmo o supunha um pouco mais culto — não conhece a obra de Gramsci. Ao me atribuir o que eu jamais escreveria, curiosamente, revela a própria ignorância. Se ler, é bem provável que goste. Quanto a ter trabalhado na Europa… Santo Deus! Este senhor me obriga a uma arqueologia pela qual não tenho gosto particular: a dos fulanos. Mino, pintor frustrado (essa coisa de pintores frustrados pode ser um perigo para a humanidade!!!), nunca passou de um mero foca do jornal italiano Il Messaggero. Cresceu à sombra do pai, este, sim, profissional respeitado (honra a quem merece) e teve a sorte de ser acolhido pela “elite nativa” que tanto despreza — desprezo, diga-se, que se estende ao Brasil. Não é raro que se refira ao país como “um esgoto”, fazendo a mímica de quem enfia o dedo na goela para vomitar. E ele sabe que é verdade. E os que trabalharam com ele sabem que é verdade.
No que chama, então, “esgoto”, fez-se o melhor biógrafo de si mesmo e pôde até ressuscitar as suas pretensões artísticas, com telas, assim, coladas da gramática de um Francis Bacon, mas sem a angústia genuína daquele. Trata-se de pastiche à carbonara do falso carbonário alçado por si mesmo à condição de falso aristocrata num país que ele considera de bárbaros. Orestes Quércia, diga-se, em quem ele enxergou excepcional talento durante anos — e deixou isso registrado em textos igualmente memoráveis —, era um dos compradores de seus quadros. Mino sugere que meu emprego não se deve a meu talento. Ainda que assim fosse — há contravérsias, hehe —, não pago as minhas contas com o dinheiro roubado dos desdentados.
Os adoradores de Mino Carta continuem a adulá-lo. Não escrevo para conquistá-los. Aliás, não escrevo para ser querido. Eu só demonstrei que a Capitu da Rua da Glória já estava presente naquela da rua do… Adora-Cavalos!!!