Mais um desafio a Elio Gaspari. Ou: Em quem batem os corajosos e os covardes. Ou ainda: Quem é mesmo a elite reacionária?
Elio Gaspari não se cansa de transformar seus preconceitos em verdades universais? Também não me canso de apontar suas tolices e mistificações. Sim, ele escreve a favor do fluxo do poder, que parece dar como eterno. Escrevo no contrafluxo. Não ligo. Não é de hoje. Não é a primeira vez que ele está com os […]
Elio Gaspari não se cansa de transformar seus preconceitos em verdades universais? Também não me canso de apontar suas tolices e mistificações. Sim, ele escreve a favor do fluxo do poder, que parece dar como eterno. Escrevo no contrafluxo. Não ligo. Não é de hoje. Não é a primeira vez que ele está com os que mandam, com ou sem farda. Não é a primeira que faço a crítica aos poderosos, com ou sem farda. No meu caso, valeu também para o governo FHC, como sabe quem acompanhava a revista Primeira Leitura. Adiante.
Gaspari escreve hoje na Folha um daqueles artigos que podem entrar para a galeria das suas grandes tolices, para dizer pouco. O que tem me fascinado nesses tempos é que certos articulistas ou contam com o preconceito ou com a ignorância dos seus respectivos leitores. No artigo em questão, o objetivo do autor é demonstrar a relevância que teve no resultado das urnas o Bilhete Único Mensal, proposto por Haddad — o prefeito eleito já inventou uma desculpa para empurrar a medida para 2014. Vale a pena ler o texto inteiro. Dou destaque a alguns trechos. Comento em seguida.
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EM AGOSTO, quando o candidato Fernando Haddad prometeu a criação de um Bilhete Único Mensal, pelo qual o cidadão poderia comprar um passe livre para os ônibus municipais, a marquetagem tucana acusou-o de propor uma taxa, um “bilhete mensaleiro”.
Dividia-se o eleitorado em dois grupos. Um, que já foi a Londres, Nova York ou Paris e sabia que esse tipo de bilhete com desconto não é uma taxa, pois ninguém é obrigado a comprá-lo. Noutro grupo estava a população que usa os ônibus. Para ela, bastava fazer a conta: se o novo bilhete custar R$ 150 e o cidadão fizer duas viagens por dia, a tarifa de R$ 3 cai para R$ 2,50.
Com o início da propaganda eleitoral gratuita Haddad tinha 16% nas pesquisas, bem atrás dos 35% de Celso Russomanno, que sobrevivia ao raquitismo de seu tempo de exposição e de uma ofensiva de parte da hierarquia católica. Uma semana antes da eleição, o “fenômeno Russomanno” começou a evaporar. Na véspera, tinha 27% das preferências. Abertas as urnas, ficou com 22%, fora do segundo turno. O que houve? No final de setembro Russomanno prometera a cobrança de tarifas diferenciadas nas viagens de ônibus. Simples assim: quem anda muito pagaria mais, como quem viaja muito é o trabalhador, lá vinha tunga. Até hoje a explicação mais convincente para a implosão de Russomanno está na migração dos eleitores mais pobres. Perceberam o perigo e saltaram.
O tucanato, que condenara o Bilhete Único Mensal acordou e, no segundo turno, correu atrás, propondo a extensão da sua validade. Desde 2004, quando a prefeita Marta Suplicy foi a primeira a instituir essa modalidade de tarifa numa grande cidade brasileira, governantes e candidatos do PSDB olham para a iniciativa com cara feia. Primeiro porque criticavam-na nos seus aspectos técnicos. Depois, porque ela parecia coisa do adversário. Acordaram com oito anos de atraso.
É uma exagerada temeridade atribuir o resultado eleitoral de São Paulo ao item do Bilhete Único, mas certamente ele foi um dos ingredientes do naufrágio, pela percepção oferecida ao eleitorado. No primeiro turno uma parte dele saltou de Russomanno porque o doutor queria cobrar mais caro pelas tarifas de quem fica duas horas no ônibus para chegar ao trabalho. Não se deve esquecer que os transportecas da prefeitura defenderam a instituição do pedágio urbano para veículos sobre pneus numa cidade em que a municipalidade nada cobra pelos pousos de helicópteros. Com uma cabeça dessas, um candidato tucano poderá ganhar a eleição em Fort Worth, no Texas, pois lá está a fábrica das aeronaves Bell.
A renovação de que o PSDB precisa e que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso vocalizou é de nomes mas, sobretudo, de ideias. Não só de propostas novas, mas sobretudo de uma faxina nas velhas, demofóbicas. Os candidatos do PSDB deveriam ser obrigados a usar a rede de ônibus todos os dias, durante pelo menos uma semana. A experiência valeria mais que sete seminários com ex-ministros tucanos reapresentando ideias de um governo que acabou em 2002. Algo como barões do Império amaldiçoando a República em 1899, durante o governo Campos Salles.
Voltei
Gaspari apenas está aderindo a uma onda asquerosa de certo articulismo que pretende linchar a reputação do tucano José Serra, que ele tem hoje na conta de um desafeto, sabe-se lá por quê. No geral, aquele que é derrotado nas urnas desaparece por algum tempo do noticiário. Com Serra, dá-se o contrário. Parece haver certa disposição para esquartejar, salgar o corpo e distribuir pelas terras da Coroa. Raramente vi tamanho exercício de covardia. Quem está precisando de renovação, parece, é o colunismo impresso…
Que os petistas digam em campanha eleitoral — porque, a sério, nem eles são capazes de sustentar isso — que Serra seja demofóbico e só faça obras para ricos, eis algo detestável, sim, mero exercício de baixa política, mas compreensível no contexto, já que são quem são. Mas Gaspari??? Um jornalista? Marta instituiu o bilhete único, mas perdeu a eleição justamente para Serra, o que evidencia que os “pobres” têm algumas outras necessidades além de transporte. A gestão petista não conseguiu construir um único leito de hospital; fez os CEUs para a propaganda eleitoral, mas largou milhares de estudantes em escolas de lata — que acabaram na gestão Serra-Kassab.
Quando o tucano chegou à Prefeitura, havia 60 mil vagas em creches — e uma fila de credores. Haddad encontrará a Prefeitura com 210 mil e com dinheiro em caixa. A obra de Serra na Saúde — nas esferas federal, municipal e estadual — é reconhecida até por adversários. No debate da Globo, o próprio Haddad afirmou que daria continuidade ao programa Mãe Paulistana e Remédio em Casa, por exemplo. Fez-se em São Paulo, nos últimos oito anos, o maior programa de reurbanização de favelas da história. Isso não é conversa de marqueteiro.
Afirmar que o tucano — e é de Serra, sim, que ele está falando — é demofóbico porque tem crítica a uma determinada medida na área de transporte seria desonestidade intelectual num jornalista de 20 e poucos anos, formado já nas universidades petistas. Num de 68… Quando a Prefeitura de São Paulo investiu R$ 1 bilhão no metrô, era por demofobia que o fazia, senhor Gaspari? Quando os tucanos estenderam o bilhete único ao metrô, era por demofobia que o faziam, senhor Gaspari? A Rede Lucy Montoro de reabilitação serve só aos ricos, senhor Gaspari? E o Instituto do Câncer de São Paulo? E as AMAs e AMEs? Atendem aos milionários?
Que grande mal José Serra fez a essa gente toda? Qual é a folha de serviços prestados ao povo por Gaspari — mesmo sem mandato eletivo, cidadãos podem se dedicar a obras em benefício de terceiros, não? — que lhe confere autoridade moral para acusar Serra de demofobia? Desafio-o — ele nunca topa porque julga ter a superioridade que finge ter — a listar as obras “demofóbicas” do ex-governador e ex-prefeito. Eu me proponho a listar as obras “demofílicas”.
Não pode haver covardia maior do que esta: Gaspari sabe que o objeto de seu ataque bucéfalo não tem, no momento, condições de se defender. Ao jornalista, não basta tentar provar que o outro não tem futuro político. É preciso aderir à torcida que zurra e tenta destruir também o seu passado, recorrendo a uma linguagem que consegue ser tão rasteira quanto a campanha de Fernando Haddad.
Por uma questão de caráter, desde que escrevo textos opinativos, analíticos, eu prefiro bater — quando discordo, é claro! Até faço elogios de vez em quando — em quem está no poder. Também por uma questão de caráter, há os que preferem chutar quem foi derrotado. Um caso requer um tanto de coragem e ousadia. O outro só pede uma dose adicional de covardia.
Fiz um desafio. Como Gaspari não vai aceitar, deveria usar a sua coluna na Folha e no Globo para listar as obras que Serra fez contra o povo. Seus leitores certamente gostariam de vê-lo provar uma tese. Os meus gostam quando provo as minhas. Gaspari, como todo mundo, tem o direito de detestar quem quiser. Já a mentira é outro departamento.
Finalmente
Associar o nome de Serra a uma elite passadista, incapaz de entender a mudança, a exemplo do que faz no parágrafo final, é indigno. Alto lá! Serra tem biografia. Isso me obriga a lembrar que Gaspari, em 1970, na comemoração dos seis anos do regime militar de 64, escreveu a quatro mãos um texto que explicava por que o Ato Institucional nº 1, que cassava direitos políticos por dez anos, não tinha de ser enviado ao Congresso porcaria nenhuma! Afinal, na formulação de Francisco Campos, a que aderem os autores, era “a revolução que legitimava o Parlamento, e não o Parlamento, a revolução”. Gaspari chamava o golpe de “revolução” até se tornar historiador amador. Um pensamento lindamente totalitário! Enquanto ele escrevia aquilo, Serra estava exilado no Chile. Três anos depois, fugiria do Estádio Nacional por ocasião do outro golpe, o de Pinochet. De volta ao Brasil, não pediu indenização. Em matéria de convescote com a elite reacionária, Gaspari, definitivamente, não tem lições de moral a dar a Serra.
Taí. Gritei “truco!”. Se Gaspari quiser chamar “seis!”, a gente pode ter um jogo bom. Mas ele vai correr de novo e me dar só um pontinho…
PS – É isso aí! Como sou bobo, defendo quem não tem poder. Os mais inteligentes do que eu preferem fazer o contrário. Nunca lhes faltou coragem para tanto!