Chalita e o discurso do plágio voluntário
Jesus Cristo multiplicou os peixes. Menos modesto, o deputado Gabriel Chalita (PMDB-SP) multiplica títulos acadêmicos. Seu gigantesco patrimônio sugere que ele sabe também, como ninguém, multiplicar rendimentos. O homem é um portento. A sua “pedagogia do amor” lhe tem sido um “amor de pedagogia”. A Folha de domingo traz uma reportagem de Uirá Machado que […]
Jesus Cristo multiplicou os peixes. Menos modesto, o deputado Gabriel Chalita (PMDB-SP) multiplica títulos acadêmicos. Seu gigantesco patrimônio sugere que ele sabe também, como ninguém, multiplicar rendimentos. O homem é um portento. A sua “pedagogia do amor” lhe tem sido um “amor de pedagogia”. A Folha de domingo traz uma reportagem de Uirá Machado que realmente dá o que pensar.
Esse portento do mundo das letras, das artes, da filosofia, da pedagogia e da auto-ajuda — capaz de plagiar O Pequeno Príncipe sem enrubescer — concluiu dois mestrados, com três anos de diferença, apresentando uma só tese. Apresentou um, vá lá, estudo sobre as obras de Maquiavel e Étienne de La Boétie no departamento de Ciências Sociais da PUC, em 1994, e, três anos depois, o mesmo trabalho — índice de coincidência de 75%, segundo a Folha — lhe rendeu um mestrado em direito.
Ainda que Chalita tivesse sido absolutamente original no cotejo dos pensamentos de Maquiavel e La Boétie — o que duvido, já digo por quê —, apresentar um mesmo trabalho para obter dois mestrados é coisa de picaretas. A razão é simples: uma tese requer necessariamente uma abordagem original em relação, inclusive, ao trabalho do próprio autor, uma nova pesquisa, um ângulo inexplorado ou uma interpretação inusitada de um determinado tema a partir do conhecimento disponível. De resto, não existe nada mais carne-de-vaca nas ciências sociais do que comparar as abordagens do poder desses dois autores. É, assim, o nível “Massinha I” da área.
A Folha informa que, do primeiro para o segundo trabalho, o número de referências bibliográficas saltou de 15 para 31 “e o trabalhou ganhou dois capítulos – que foram largamente baseados no verbete “poder político” da “Enciclopédia Barsa” de 1977 e em citações de Shakespeare.” A Enciclopédia Barsa era o Google pré-Internet. Profundo.
A reprodução de trechos é constrangedora, provoca a tal vergonha alheia.
No mestrado de ciências sociais
Objetivo: Discutir a questão do poder, comparando “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel (1469-1527), com o “Discurso da Servidão Voluntária”, de Étienne de La Boétie (1530-1563), e analisar as “relações de poder entre o príncipe e o povo”
Trecho: “Se pudéssemos sintetizar dois pensamentos, um de Maquiavel e outro de La Boétie, poderíamos afirmar: primeiro conheçamos a realidade, e, depois, ousemos construir e perseguir a utopia. Esta é a virtude do homem, seu desafio”.
No mestrado de direito
Objetivo: Discutir a questão do poder, analisando “O Príncipe”, de Maquiavel, e o “Discurso da Servidão Voluntária”, de La Boétie, “no que tange às relações de poder entre o governante e o povo”.
Trecho: “Se pudéssemos sintetizar dois pensamentos, um de Maquiavel e outro de La Boétie, poderíamos afirmar: primeiro conheçamos a realidade e, depois, ousemos construir e perseguir a utopia. Esta é a virtude do homem, seu desafio”.
Voltei
Como se viu, de um texto para outro, houve uma ligeira piora porque a expressão “no que tange” é, além de desnecessária, imprecisa. De resto, “conservadores” ou “progressistas”, esquerdistas ou liberais, não há um só leitor de Maquiavel com os meridianos ajustados capaz de concluir que o pensador estimula a “construção da utopia”. Chalita deve ter lido alguma edição pirata, reescrita por algum selenita.
No twitter, Chalita tenta desqualificar a reportagem e a chama de trabalho de encomenda ou algo assim. “Encomenda” de quem”, cara pálida? Afinal, quem tem medo de Gabriel Chalita? Talvez Maquiavel,| La Boétie e qualquer sopro de originalidade.