AS PALAVRAS
Às vezes, o internauta convicto demais exagera no adjetivo sem tomar o cuidado de proceder a uma pesquisa mínima. No post sobre o filme O Leitor, afirmei que Michael assistia aos depoimentos de Hanna “com a alma devastada”. Aí o Daniel Zandonadi (or someone else…) mandou ver: “Só que “devastar” é um estrangeirismo idiota, que […]
“Só que “devastar” é um estrangeirismo idiota, que pena.
(Para explicar a quem não souber do que estou falando, é uma tradução equivocada do inglês “to devastate”, para o qual a tradução correta é “desolar”).
Publicar Recusar (Daniel Zandonadi (or someone else) 08/02/09
É uma pena, Daniel, mas você está errado. O primeiro registro da palavra DEVASTAR na língua portuguesa data de 1572. Ser o primeiro registro escrito não quer dizer que a palavra tenha sido criada nessa data. Se alguém a escreveu, certamente já era de uso corrente.
Isso nem é tão estranho, né, Daniel? Afinal, a palavra vem do verbo “devasto”, no latim — mais clássico, portanto, que caixa de Maizena ou de creme de arroz Colombo… “Devastar” não é, como você quer, um anglicismo. “To devastate”, sim, é que é um dos milhares de latinismos do inglês, embora esta não seja uma língua neolatina. Mais ainda: “devastar” e “desolar” são sinônimos, mas duas palavras jamais significam rigorosamente a mesma coisa ou, acredite, haveria uma só. Como têm origens distintas, indicam ângulos distintos da experiência. É por isso que investigar a etimologia não deixa de ser investigar o pensamento.
Embora, reitero, tenham uma faixa de significação comum, elas se distinguem, às vezes, de maneira clara. Em português, afirmar que uma determinada região foi “desolada” por um bombardeio há de gerar certa estranheza, por mais que se insista que se está empregando um sinônimo de “devastada”. Isso quer dizer, Daniel, que há situações em que a palavra parece cobrar a memória de sua origem. Fica melhor dizer que uma região foi devastada por uma tragédia qualquer, não? Como parece mais apropriado dizer que o amante abandonado está desolado, sozinho, inerme, triste.
Não era o caso de Michael, não. Quando ele descobre que a mulher que lhe ensinou as primeiras letras do amor, soletrando, intui-se, com maestria os vocábulos todos do discurso erótico (olhe como estou sutil nesta madrugada), ele fica devastado mesmo, viu, Daniel? Fica destruído, coitado, atormentado. É mais do que uma desolação a sugerir passividade e solidão. De todo modo, o que interessa, Daniel, é que “devastado” não é um anglicismo. Quando Catão mandou ver no seu “delenda Carthago” (a frase que virou clichê nem foi dita assim, mas não interessa agora), vá por mim: ele queria que a república romana devastasse a cidade fenícia… Muitos dos nossos historiadores de meia-tigela poderiam dizer que Catão é o precursor da guerra preventiva do Jorjibúxi…