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Reinaldo Azevedo

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Blog do jornalista Reinaldo Azevedo: política, governo, PT, imprensa e cultura

As bobagens de um dos roteiristas de Tropa de Elite e a Estética da Petrobras

Bráulio Mantovani, um dos roteiristas de Tropa de Elite (e também de Cidade de Deus, que é bom), está na Folha de hoje, numa entrevista a Luiz Fernando Vianna. No meu artigo sobre o filme, na VEJA da semana passada, escrevi: “José Padilha [diretor] e o ator Wagner Moura foram convocados a ir além de […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 20h17 - Publicado em 20 out 2007, 16h35
Bráulio Mantovani, um dos roteiristas de Tropa de Elite (e também de Cidade de Deus, que é bom), está na Folha de hoje, numa entrevista a Luiz Fernando Vianna. No meu artigo sobre o filme, na VEJA da semana passada, escrevi: “José Padilha [diretor] e o ator Wagner Moura foram convocados a ir além de suas sandálias. Assim como um juiz só fala nos autos, a voz que importa de um artista é a que está em seu trabalho. (…) Pouco me importa o que pensam Padilha e Moura. O que interessa é o filme. E o filme submete a um justo ridículo a sociologia vagabunda que tenta ver a polícia e o bandido como lados opostos (às vezes unidos), mas de idêntica legitimidade, de um conflito inerente ao estado burguês. O kantiano rústico ‘pegou geral’ o Bonde do Foucault.”

Preocupo-me quando artistas falam. Nunca leio as opiniões dos meus “ídolos” (não é o caso de Mantovani) sobre assuntos fora da sua especialidade. Quase sempre é besteira. Um dos males ainda oriundos da ditadura é essa mania que a gente tem de achar que o Chico Buarque, por exemplo, entende de sociologia. Ele sabe fazer canção. Tá bom. Mas é vaidoso, né? Aí quer fazer romance, pensar o Brasil, expelir sentenças sobre o imperialismo americano e Cuba… E a imprensa vai registrando. Se declarasse suas preferências culinárias, despertaria o mesmo interesse: “Chico gosta de lasanha…”

Mas volto a Mantovani. Na entrevista à Folha, diz algumas coisas certas. Repele, por exemplo, a crítica idiota que acusa Tropa de Elite de “fascista”. É claro que não é. Ele tem razão. O Capitão Nascimento não foi pensado para ser uma referência positiva. Acabou adotado pelos sem-polícia, pelos sem-segurança, a despeito da vontade de roteiristas, diretor, atores… Daí que agora eles pareçam o Wanderney do Casseta & Planeta, que mora numa sauna masculina junto com o Peludão, mas vive repetindo: “Eu não sou gay”. Se espremerem Mantovani e Padilha mais um pouco, eles ainda editam um manual: “Como ver o Capitão Nascimento”. Não existe nada mais covarde do que um artista com medo de sua própria obra.

Entendo. Diretores, roteiristas e atores estão mais ou menos seqüestrados pelo Bonde do Foucault, não é? Se pesar sobre eles a suspeita de que possam não ser tão progressistas quanto são os segundos cadernos ou os jornalistas que escrevem invariavelmente contra a polícia, isso pode ser ruim para a sua reputação. A Petrobras, que tem sobre a cultura brasileira mais influência do que tinha Goebbels na produção nazista, pode não gostar. E, sem a caixa preta ou a grana preta da Petrossauro, fica mais difícil fazer filmes para “educar”, “instruir” e “libertar” os brasileiros das trevas da ignorância. Sem contar a chateação de não ser visto como um ente iluminado pelo progressismo…

Besteira
Reitero. Como espectador, blogueiro, analista, indivíduo, eu não tou nem aí para o que pensa Mantovani. A sua resposta a uma pergunta da Folha é de um primarismo lastimável, coisa de quem foi, aposto, mau aluno de matemática e, pois, de lógica. Leiam isto:

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FOLHA – O Bope invadindo a Cidade de Deus é uma cena triste ou um mal necessário?
BRÁULIO MANTOVANI –
Sempre leio com tristeza as notícias de mortes violentas. A ação da polícia não pode ser um mal necessário. A situação violenta em que vivemos não vai ser resolvida com uma polícia mais dura, com mais prisões e mortes de criminosos. Imaginar que a legalização das drogas ajudaria a resolver o problema é ingenuidade. Existe um apartheid social no Brasil, com ou sem drogas legais. Acabar com essa situação de apartheid é a única forma de diminuir a violência e a criminalidade. Veja, por exemplo, a polêmica em torno do relógio do Luciano Huck. O cara tem razão de reclamar? Tem. Mas isso é só um lado da moeda. O Ferréz escreveu um texto contando uma história imaginária, mas nem por isso menos real, do cidadão (insisto no cidadão) que roubou o relógio. Ele descreveu uma situação em que o episódio está, por assim dizer, historicizado. Ferréz foi além do óbvio e provocou o pensamento. O que as classes privilegiadas no Brasil precisam responder é o seguinte: vocês querem continuar pagando salários de fome para empregadas domésticas, porteiros, policiais, professores etc? Se a resposta é sim, conformem-se em perder seus relógios e agradeçam por estarem vivos. Dizer que o Ferréz faz a apologia do crime é tão equivocado quanto dizer que “Tropa de Elite” faz a apologia da violência policial.

1) Também acho que a ação da polícia não poder ser um mal necessário porque ele tem de ser um bem necessário. Nas sociedades organizadas, o estado detém o monopólio do uso legítimo da força, que se torna uso legal. E legal deve continuar.
2) Os números desmentem Bráulio. Quando a polícia é mais dura e prende mais, a violência cai. O Rio tem, por 100 mil, três vezes mais homicídios do que São Paulo. E São Paulo prende bem mais do que o Rio. É o único fator? Não! Mas experimente trancafiar os bandidos do Rio para ver se o índice de violência cai ou não.
3) É verdade. A mudança das leis sobre as drogas não adiantaria. Concordo com ele, por motivos certamente diversos.
4) É mentira! O apartheid social não determina a violência, ou a Índia viveria no estado da natureza. Mas não é preciso ir tão longe. A larga maioria dos pobres é constituída de gente honesta. O mesmo vale para os ricos. É uma minoria que escolhe a delinqüência. Se não é devidamente reprimida, impõe a sua vontade. Ser criminoso é uma escolha moral, não uma determinação de classe ou da natureza. Ainda bem que Mantovani não faz um roteiro com essa tese chulé. Ninguém iria ver.
5) A sua análise do texto de Ferréz, que faz a apologia do crime, é ridícula. Ele “provocou o pensamento” tanto quanto um texto na Folha que defendesse execuções sumárias provocaria. Ademais, o empresário do Capão Redondo recorreu a um instrumento retórico covarde. Expôs o que é um norte moral por meio de uma suposta ficção.
6) O trecho mais idiota de sua fala é este: “Vocês querem continuar pagando salários de fome para empregadas domésticas, porteiros, policiais, professores etc? Se a resposta é sim, conformem-se em perder seus relógios e agradeçam por estarem vivos.” É delinqüência teórica e moral. E a razão é simples: “Empregadas domésticas, porteiros, policiais, professores” são trabalhadores, não bandidos. Os bandidos quiseram ser outra coisa. Há um hábito muito nosso de achar que a culpa é sempre alheia. Ele tem empregada? Paga quanto? Aposto, carteira a carteira de trabalho mais benefícios, que pago mais do que ele. Aposta no escuro. E, no entanto, não sou tão “progressista” quanto ele…
7) Ferréz fez a apologia do crime. Aquilo é o que ele pensa. Se Mantovani acha que as personagens do seu roteiro são equivalentes ao “correria” do empresário do Capão, subestima o filme de que ele próprio participa.

Quem leu meu texto sabe que não entrei no mérito estético ou técnico do filme. Eu o tratei, desde sempre, como fenômeno de opinião pública. Tanto é assim, que escrevi alguns posts a respeito antes mesmo de vê-lo. Um deles tinha um título, vejam lá, que é “Não vi e já gostei”, algo assim. Se fosse debater propriamente a narrativa, teria muitos reparos:
– a oposição entre o assassinato do garoto que era operário do tráfico e o nascimento do filho do Nascimento é clichê barato (ainda que fosse inspirado em fato real — em arte, o verossímil é melhor que o verdadeiro);
– a mulher um tanto chatinha e emotiva de Nascimento em contraste com o marido e sua missão é ardil de novela das oito;
– o policial a um só tempo meio bandido e boa praça que é o vértice de humor de Tropa de Elite (aquele que “pede pra sair”) também é personagem manjada;
– a classe média que cheira pó aparece, é inegável (os comunistas de carreira têm razão), como caricatura.

Em suma, o roteiro é um tanto esquemático. Trata-se de um bom filme médio como obra de arte. Ficamos sabendo agora que, à revelia daqueles que o fizeram, acabou tocando em alguns aspectos importantes da mitologia da criminalidade. E só por isso é um justo fenômeno de público. Despertou um tipo de debate que fugiu ao controle de diretor, roteiristas e atores. E esse, sem dúvida, ao lado da estupenda atuação de Wagner Moura, é seu maior mérito.

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Bráulio Mantovani é um bom roteirista. Tomara que fique ainda melhor com o tempo. Mas é um mau sociólogo da violência. Precisa estudar mais, informa-se mais, para parar de falar bobagem (se é que pretende ser lido como pensador; acho uma temeridade pra ele). Como pessoa ligada ao cinema, evidencia que sabe mexer com as platéias — e isso é sinal de competência. Como formulador de teses, é inócuo, porque aborrecido e convencional. Essa ladainha das origens sociais da violência não poderia estar mais desmoralizada. Mas ele precisa pagar o pedágio aos “correrias” ideológicos. Mormente porque foi entrevistado depois de uma ação da polícia que deixou alguns mortos. Certo jornalismo vagabundo está a um passo de culpar o filme. Então Mantovani, preventivamente, se ajoelha no milho.

Posso estar errado, mas é bem possível que toda essa gente ainda acabe fazendo algo como Tropa de Elite — O Outro Lado, reconciliando-se, então, com o establishment politicamente correto. É a ditadura do bom-mocismo. É a estética da Petrobras.

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