Apocalipse
Os cientistas do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática) apresentaram ontem, em Bruxelas, a segunda parte do Quarto Relatório de Avaliação. Quando li a respeito, por alguma razão, aquilo não me parecia inédito. E então me dei conta de que eu estava revisitando o Apocalipse de São João. Teólogos, místicos e exegetas os mais diversos […]
As conclusões do tal relatório estão em todos os jornais e sites, não preciso repeti-las aqui. Aumentou sobremaneira o catastrofismo. Cientistas não estão certos de que o aquecimento global verificado seja mesmo fruto da ação humana e conseguem antecipar o futuro — ou a falta dele — com impressionante imprecisão. Mas que será terrível, ah, isso será!
O que chamou a minha atenção desta vez é que o aquecimento global, vejam só, será pior para os pobres. Até havia pouco, o apocalipse parecia colher a humanidade de forma mais ou menos homogênea — estávamos ameaçados como espécie. Acho que essa hipótese, ou ameaça, começou a parecer um tanto, como direi?, apolítica, pouco mobilizadora. Isso mudou: os países ricos, que respondem por metade da emissão dos gases do aquecimento global, podem ter a sua agricultura até beneficiada; já a África, que emite apenas 3%, viverá dias ainda mais difíceis. Também o aquecimento tem características de uma luta de classes. Seguem trechos do Apocalipse de João, em vermelho, e o seu real sentido, em azul.
E, havendo aberto o sétimo selo, fez-se silêncio no céu quase por meia hora.
E vi os sete anjos, que estavam diante de Deus, e foram-lhes dadas sete trombetas.
E veio outro anjo, e pôs-se junto ao altar, tendo um incensário de ouro; e foi-lhe dado muito incenso, para o pôr com as orações de todos os santos sobre o altar de ouro, que está diante do trono.
E a fumaça do incenso subiu com as orações dos santos desde a mão do anjo até diante de Deus.
E o anjo tomou o incensário, e o encheu do fogo do altar, e o lançou sobre a terra; e houve depois vozes, e trovões, e relâmpagos e terremotos.
E os sete anjos, que tinham as sete trombetas, prepararam-se para tocá-las.
Os anjos são os cientistas reunidos em Bruxelas. Deus, no caso, é uma referência a Al Gore, que foi vencido, numa primeira batalha, por um demônio chamado Jorjibúxi, que fez um grande mal ao planeta. Mas agora chegou a hora de o çerumano pagar o preço da sua estupidez.
E o primeiro anjo tocou a sua trombeta, e houve saraiva e fogo misturado com sangue, e foram lançados na terra, que foi queimada na sua terça parte; queimou-se a terça parte das árvores, e toda a erva verde foi queimada.
Referência às queimadas da Amazônia e à savanização da floresta.
E o segundo anjo tocou a trombeta; e foi lançada no mar uma coisa como um grande monte ardendo em fogo, e tornou-se em sangue a terça parte do mar.
E morreu a terça parte das criaturas que tinham vida no mar; e perdeu-se a terça parte das naus.
Trata-se da revelação do aquecimento da água do mar, é claro. Simples e direto. Antecipa-se também a mortandade de peixes. O peixe, como sabem, é o símbolo do alimento. Os cientistas do IPCC antecipam a grande fome mundial por causa do aquecimento global. Prevê-se a desertificação de áreas do Nordeste brasileiro. Se bem que os cientistas não contam com a nossa astúcia: faremos a transposição do São Francisco…
E o terceiro anjo tocou a sua trombeta, e caiu do céu uma grande estrela ardendo como uma tocha, e caiu sobre a terça parte dos rios, e sobre as fontes das águas.
E o nome da estrela era Absinto, e a terça parte das águas tornou-se em absinto, e muitos homens morreram das águas, porque se tornaram amargas.
O Apocalipse antevê que grande parte da humanidade padecerá com a falta de água doce potável. O absinto é uma metáfora. Trata-se da poluição dos rios, nascentes e lençóis. Tudo culpa do çerumano que não respeitou a natureza. Na África, 250 milhões ficarão sem água. No mundo, 1 bilhão.
E o quarto anjo tocou a sua trombeta, e foi ferida a terça parte do sol, e a terça parte da lua, e a terça parte das estrelas; para que a terça parte deles se escurecesse, e a terça parte do dia não brilhasse, e semelhantemente a noite.
Nos anos 70, afirmava-se que a terra iria congelar, e se tinha nessa passagem uma evidência desse risco. Mas agora os especialistas em clima explicaram tudo. Trata-se, obviamente, de uma referência à concentração de gases demoníacos.
E olhei, e ouvi um anjo voar pelo meio do céu, dizendo com grande voz: “Ai! ai! ai! dos que habitam sobre a terra! por causa das outras vozes das trombetas dos três anjos que hão de ainda tocar.”
Isso quer dizer que o mal está apenas começando. Vem mais por aí.
(…)
E da fumaça vieram gafanhotos sobre a terra; e foi-lhes dado poder, como o poder que têm os escorpiões da terra.
E foi-lhes dito que não fizessem dano à erva da terra, nem a verdura alguma, nem a árvore alguma, mas somente aos homens que não têm nas suas testas o sinal de Deus.
Gafanhotos, como sabem, são uma praga agrícola. Mais uma alusão à fome decorrente do aquecimento do planeta. Os escorpiões simbolizam a punição para aqueles que não tinham a testa assinalada: isto é, os que não acreditavam no aquecimento global. Leio que alguns cientistas ainda acharam otimista a segunda parte do relatório e acusam pressões políticas para suavizá-lo. É um sinal de que o çerumano não aprende mesmo.
O que mais me fascina nessa história é tentar entender por que diabos alguns “facínoras” insistiriam em destruir o mundo. Vocês não ficam curiosos? Reparem: nenhum outro debate, acho, opõe de forma tão nítida o Bem e o Mal. Todas as outras causas têm matizes. Esta não tem. Qual é a minha hipótese? A mesma que explica que o radicalismo islâmico tenha virado uma “causa libertária”: a militância anticapitalista, de esquerda, migrou para a ecologia e a transformou numa ideologia.
O pior desse debate é que, até agora, são bem poucas — se formos ser rigorosos, inexistem — as soluções ou respostas possíveis. Como em qualquer escatologia, por enquanto, vivemos a fase da crença no fim dos tempos. Só nos resta olhar do lado em busca de culpados. E, é claro, os Estados Unidos são o mais forte candidato ao banco dos réus. Pode sair algo de positivo disso tudo? Se o mundo superar a fase dos lamentos, sim. Se medidas forem tomadas para diminuir a emissão de gasese o desperdício de matéria-prima ou de água potável, tanto melhor.
A história da civilização tem sido, até aqui, a da resolução de problemas que ela mesma se propõe à medida que vai avançando. E só por isso passamos dos seis bilhões. Talvez tenhamos aquecido um tantinho o planeta. Foi o preço de criar vacinas, de produzir proteína animal em escala para alimentar toda essa gente, de fazer a revolução comercial, de ter Leonardos e Rafaéis…
Eu confesso que, depois da perda do Éden — aquele, sabem? —, eu não esperava nada muito melhor do que isso que está aí. A alternativa talvez fosse um paraíso sem homens, cheio de escorpiões, elefantes e ararinhas azuis.