APESAR DE VOCÊ
O texto que segue abaixo, em azul, é da lavra de Mario Sabino, hoje redator-chefe de VEJA, e foi publicada na edição nº 1801 da revista, em 7 de maio de 2003. Há longos cinco anos, portanto. O que o motivou foi a execução sumária, em Cuba, de três pobres-diabos que tinham cometido o “crime” […]
Mas, afinal, o que é que uma minoria sectária e “piscopateta” tanto odeia em nós? Coerência intelectual, vergonha na cara, decoro, senso de justiça — qualidades estas que não podem conviver com o stalinismo remanescente ou com o jornalismo dos mascates, tocadores de tuba, ratazanas, “dualéticos”, isentistas e porta-sacos do oficialismo.
…e de seus amigos intelectuais e artistas, amanhã há de ser outro dia para Cuba
Intelectuais e artistas deveriam ser defensores intransigentes da liberdade de opinião, de expressão, de associação e de tudo o mais que compõe o cardápio básico dos direitos humanos. Mas, desde que tomou o poder em Cuba, em 1959, no que se convencionou chamar de “revolução cubana”, o ditador Fidel Castro conseguiu fraturar essa lógica de extração iluminista. Maroto e dissimulado, ele vende a idéia de que tem o direito de perseguir, prender, torturar e matar seus opositores, para manter a pureza do regime socialista e sua ilha fora do alcance dos cavilosos imperialistas ianques. Essa conversa fiada, que remonta ao período da Guerra Fria e hoje mais parece enredo de opereta, continua a ser comprada por escritores, músicos e similares de diferentes latitudes. Há três motivos básicos que lhes obnubilam o juízo. Antes de mais nada, o antiamericanismo puro e simples, um fenômeno de idiotia generalizada que faz muita gente boa acreditar que George W. Bush é igual a Adolf Hitler e que Osama bin Laden é o vingador dos pobres e oprimidos. Em segundo lugar, a nostalgia esquerdista que insiste em reerguer em sonho o Muro de Berlim. E, por último, mas não menos importante, o próprio fascínio exercido pela figura de Fidel Castro – uma espécie de paizão castrador que habita o inconsciente dos coraçõezinhos comunistas.
Depois que Fidel mandou para o paredón três coitados que seqüestraram uma lancha para tentar fugir de Cuba e condenou a penas de prisão elevadíssimas 75 pessoas que esboçavam uma oposição moderada ao regime, entre defensores dos direitos humanos, economistas e jornalistas, uma parte da intelectualidade e do meio artístico que apoiava o ditador finalmente resolveu debandar. O primeiro a romper, e de maneira bastante vistosa, foi o escritor português José Saramago, prêmio Nobel de Literatura e comunista empedernido. Na semana passada, mais de cinqüenta artistas e intelectuais, na maioria espanhóis, também fizeram o mesmo, por meio de um manifesto. Entre eles, o cineasta Pedro Almodóvar e o cantor brasileiro Caetano Veloso. “As injustiças e os crimes contra a humanidade têm de ser denunciados, venham de onde vierem e cometidos por quem quer que seja. Mantemos nossa solidariedade com o povo cubano, que sobrevive dentro e fora da ilha, mas não com quem já usurpou por tempo demais sua representação e sua voz”, dizia o manifesto.
Fidel, a raposa vermelha, não demorou a articular uma reação. Em seu discurso no Dia do Trabalho, disse que os intelectuais que protestaram “sofrerão um arrependimento infinito, pois perceberão que suas declarações foram manipuladas pelos agressores para justificar um ataque militar a Cuba”. Além disso, maquinou um manifesto de 160 intelectuais e artistas em favor do regime cubano. Entre os que o assinaram, estão o ator americano Danny Glover, a escritora sul-africana Nadine Gordimer e o escritor colombiano Gabriel García Márquez. Este último, cobrado pela autora americana Susan Sontag (de esquerda) pelo silêncio em relação às execuções promovidas por Fidel, afirmara dias antes que era “contra a pena de morte, em qualquer lugar, motivo ou circunstância”. Mas, depois de tomar um pito do ditador cubano, voltou atrás, dizendo que sua declaração havia sido “manipulada”.
Aos cubanos condenados à prisão e aos parentes e amigos dos que foram executados, restam apenas dois caminhos. Se forem religiosos, pedir a Deus que livre a sua ilha quanto antes do flagelo castrista. Mas não vale a pena pedir nada ao Deus do brasileiro Frei Betto, amigão do peito de Fidel. O Deus de Frei Betto zela pelo ditador que já fuzilou 17.000 pessoas, e é capaz de levar para o paraíso também o mau ladrão, desde que este renuncie ao neoliberalismo. O outro caminho para os desesperados é esperar o tempo passar na janela, enquanto assobiam o samba Apesar de Você, de Chico Buarque, notório simpatizante do regime cubano. Aquele que diz “apesar de você, amanhã há de ser outro dia”. Os versos da música, para quem não lembra, foram feitos por Chico para espicaçar a ditadura militar brasileira. Como não se manifestou sobre os últimos acontecimentos em Cuba, é de presumir que Chico Buarque ache que ditadura de esquerda é melhor do que ditadura de direita.
É uma idéia bastante comum, essa, de que ditaduras de esquerda são males menores do que as de direita. Sobrevive mesmo depois que foram revelados os crimes de Stalin, Mao e caterva. O raciocínio por trás disso é que é possível separar a essência dos regimes socialistas (que seria boa e justa) daquilo que é qualificado de “desvio” (as execuções, a censura, o terror). Trata-se de um equívoco monstruoso, visto que, na realidade, é impossível operar tal separação. Como não admite oposição nem alternância de poder, o socialismo marxista será sempre totalitário. E totalitarismo, não importa se de direita ou de esquerda, é essencialmente danoso. Para que não pairem dúvidas a respeito do que seja o regime de Fidel, utilize-se uma das definições de totalitarismo presente no Dicionário de Política, organizado pelo pensador italiano Norberto Bobbio. O regime totalitário, está lá no verbete dedicado ao tema, é resultado da união de seis pontos:
– uma ideologia oficial que abrange todos os aspectos da atividade e da existência do homem e que critica, de modo radical, o estado atual das coisas e que dirige a luta pela sua transformação
– um partido único de massa dirigido por um ditador e que se mistura com a burocracia do Estado
– um sistema de terrorismo policial
– o monopólio da direção de todos os meios de comunicação de massa
– o monopólio de todos os instrumentos de luta armada
– o controle e direção central de toda a economia.
Pois é, companheiros.