Ainda a entrevista e as imprecisões da “presidente de mau feitio”
Há, sim, uma porção de outros reparos a fazer na entrevista de Dilma ao jornalista português Sousa Tavares. Começo pelo fim (22min16s), quando ela responde como vê o Brasil daqui a 20 anos. Vênia máxima, a gente sabe como são feitas as salsichas e as entrevistas. Quando o jornalista formula a questão, ela se ajeita […]
Há, sim, uma porção de outros reparos a fazer na entrevista de Dilma ao jornalista português Sousa Tavares. Começo pelo fim (22min16s), quando ela responde como vê o Brasil daqui a 20 anos. Vênia máxima, a gente sabe como são feitas as salsichas e as entrevistas. Quando o jornalista formula a questão, ela se ajeita no sofá e olha para a câmera, como quem sabe que caminha para o encerramento. Ousaria dizer que essa foi uma concessão que o repórter fez a Helena Chagas. É a pergunta combinada com a assessoria, quando a presidente, então, formula as suas utopias e se mostra uma pensadora do futuro.
Dilma precisa ensaiar melhor o discurso. Há na fala o esforço para atingir algo de sublime, mas ainda não chegou lá. Tudo é um pouco nebuloso, confuso, com algumas palavras fora do lugar. Diz, por exemplo, esperar “um país que tem essa capacidade e essa plasticidade”. Se alguém souber que diabo isso quer dizer, peço o favor de me contar. Leiam.
I have a dream…
“Eu acredito que o Brasil será um dos países melhores de se viver. Eu imagino um país de renda média. Um país que tem essa capacidade imensa e essa plasticidade. (???). Que tem uma cultura que permite que ele seja um país que olhe com muita alegria a vida, mas também que olhe com uma certa desconfiança as imposições (???). Acho que será um país de pessoas com uma formação educacional e cultural que torne seus valores éticos, seus valores, sua ética, sua vontade de mudar algo permanente. Um país que não se imobilizará e, portanto, jamais será decadente e, por isso, um país capaz de enfrentar os desafios daqui a 20 anos que nós não sabemos quais são. Mas, sobretudo, um país que sabe que país rico é um país onde não tem pobreza. Não há riqueza material onde metade da população negra vai pra prisão. Não há riqueza quando uma parte da população é muito rica, formada de bilionários, e a outra é muito pobre. Nós temos de buscar um país de renda média e que o centro do valor seja bastante humanístico no sentido da importância da pessoa, da importância dos seres humanos que habitam este país: homens e mulheres. E crianças.
Voltei
Xiii… Os portugueses devem imaginar que há aqui um bando de ogros. Os desparecidos seriam “milhões, milhares, centenas”… E, segundo a presidente, “metade da população negra vai pra prisão”. Jesus! Deve ter querido dizer que metade da população carcerária é negra. Segundo a nova regra do “enegrecimento” do Brasil, mestiço também é negro. Por esse critério, já seriam uns 100 milhões de pessoas. Se “metade vai para a prisão”, o resto da conta vocês fazem sozinhos, né? O Brasil inteiro tem por volta de 470 mil presos… Quanto a termos um país que valorize as pessoas, só me resta uma pergunta: qual seria a alternativa?
Inflação
No começo da conversa, Dilma afirma que Lula assumiu o poder com a “inflação absolutamente fora do controle”, com o país dependente do FMI e quase sem reservas. Vamos ver. A inflação estava em alta, sim; fora do controle, não! Parte das dificuldades se devia ao risco PT — e ela sabe disso. O acordo com Fundo foi celebrado com o apoio dos petistas. FHC poderia ter deixado a batata quente para o seu sucessor. O governo Lula assumiu e não tomou uma só medida de correção de rumo porque não havia um problema nos fundamentos, mas na conjuntura.
O dólar, que já era flutuante, estava em quase R$ 4 no fim de 2002 — parte se devia também ao risco PT. Ontem, por exemplo, fechou a R$ 1,62. A contínua depreciação da moeda americana aumentou efetivamente o poder de compra dos salários, mas poderia ter sido um desastre para a balança. Ocorre que as commodities que o Brasil exporta triplicaram de preço lá fora na gestão petista — daí as reservas de que Dilma se orgulha. O mérito do governo Lula foi resistir à tentação de fazer feitiçaria. Seguiu o que estava no script. Em 2003, o crescimento ficou perto de zero, mas não se cedeu a nenhuma heterodoxia.
Dilma faz quase um poema contra a inflação, afirmando que havia, no passado, quem achasse que ela não era tão grave e tal. Eram os petistas! Por isso se opuseram ao Plano Real.
Obama e Líbia
Sobre a presença de Obama no Brasil, ela não negou nem conseguiu esconder certo clima de decepção. O Brasil efetivamente esperava um sinal mais firme de apoio à entrada no país no Conselho de Segurança da ONU. Quanto à Líbia, repetiu o que parece ser um entendimento do Itamaraty, que considero correto, de que há lá uma guerra civil. Sobre a intervenção propriamente, fez, indiretamente, uma pergunta um tanto desajeitada, de quem não é da área, mas que faz sentido: o mesmo seria feito no Iêmen ou no Bahrein?
Segurança Pública
Na questão da Segurança Pública, pregou a necessidade de uma ação do governo federal e coisa e tal e se referiu a Rio e a São Paulo como alvos especiais de atenção. Sei. Exemplo de ação, segundo ela, e a UPP do Rio, que serviria de modelo. São Paulo, que é hoje o Estado onde menos de mata no país — um terço de homicídios por 100 mil habitantes do Rio — não parece comover Dilma. Já há um quê nessa história de campanha eleitoral.
“A presidenta de mau feitio”
Quando tratavam da questão da segurança, há um momento realmente engraçado, em que Dilma revela a tal falta de intimidade com a língua de Eça. Vejam lá a partir de 16min16s. Falando sobre a necessidade de combater o crime, o jornalista considera:
Sousa Tavares – Para isso será preciso tomar medidas duras. Dizem que a senhora tem mau feitio, coisa que eu só lamento que não seja mais muito feito na política.
Dilma – [ar um tanto espantado] O quê?
Sousa Tavares – Ter mau feitio! Acho que, às vezes, é preciso ter mau feitio.
Dilma – [ainda sem entender nada, sorri, na esperança de que ele dê uma pista] Mau feitio, rá, rá, rá…
Sousa Tavares [achando que está sendo compreendido, não dá pista nenhuma] – Acha que esse mau feitio pode lhe dar melhor força nas medidas duras que vai precisar de impor?
Dilma [finalmente, ela se rende] – É que eu não sei direito o que significa mau feitio… Porque não tem essa expressão no uso…
Sousa Tavares [tentando explicar] – Mau feitio é um feitio complicado, difícil, que é muito dura nas negociações com as pessoas…
Dilma – Ah, entendi! Mau feitio, para nós, sabe o que é que significa?
Souza Tavares – Não!
Dilma – Uma roupa malfeita, mal cortada, sabe, ocê… Uma casa [da blusa] aqui assim, a outra aqui assim…
Sousa Tavares – Não, presidenta! Não estava a falar da sua toalete!
Bem, esse “toalete” poderia dar início a uma nova confusão, não é mesmo?
Encerro
Dilma disse ainda que um país que elege um operário e depois uma mulher está se encontrando consigo mesmo. Sei! Qual seria a próxima categoria a ser contemplada. Agora, para se encontrar, não basta que o país dê posse a quem ganha. É preciso que o vitorioso represente alguma forma de reparação. Isso é bobagem! Mas seduz muita gente.