AH, NÃO! AÍ JÁ É DEMAIS!!!
Fiz um postezinho ontem, antes de sair pro jantar (“Teoremas”, vejam lá) em que reproduzia uma espécie de síntese de algumas opiniões que chegam sobre coisas que eu e Diogo escrevemos. No meu caso, religião; no dele, segundo entenderam alguns leitores, aviação. E a síntese é esta: “Rei, você falando sobre política é show de […]
E então emendei: “Todos as pessoas por quem temos algum apreço deveriam só escrever ou falar coisas que fossem tão inquestionáveis quanto o quadrado da hipotenusa ser igual à soma dos quadrados dos catetos”. E então o interlocutor dirá: “Sim, você tem razão”, pouco antes de tomar uma água mineral sem gelo e sem gás.
Ora, é claro que mesmo os leitores que nos consideram interessantes não precisam e não devem concordar com tudo o que escrevemos. Tampouco precisam considerar pertinentes todas as nossas ironias e os nossos gracejos. Mas não deixa de ser curiosa a decepção de alguns quando confrontados com o que classificam as nossas “besteiras” ou o nosso “radicalismo”. É como se o liame da tolerância se rompesse. “Pô, Digo e Reinaldo! Já basta bogar o cotovelo na mesa. Agora vocês estão falando de boca cheia! Aí não dá! Nem Santos Dumont escapa? Aí eu acho que é um exagero!” Ou ainda: “Rei, esse bispo não dá; como você pode defendê-lo depois do que ele disse? Por favor, volte a falar de política”.
E há um grupo particularmente interessante. Uma leitora me mandou um longo arrazoado, com e-mail e tudo para correspondência. A propósito: jamais mandem endereços eletrônicos em comentários; nunca os publico (acontece de escapar) porque a pessoa pode receber, depois, mensagens desagradáveis e acabar me responsabilizando, como já aconteceu. Volto ao e-mail. Num dado momento, ela diz:“Tenho muitos amigos que detestam as coisas que você escreve porque acham que você é conservador demais. Eu sempre o defendo. Mas, nesse caso do bispo, fiquei sem argumentos. Acho que você queimou desnecessariamente o filme”.Agradeço o cuidado que você tem comigo, cara E.S., mas ele é desnecessário. Você não precisa concordar com tudo aquilo que escrevo. Sei que defender Dom José Sobrinho, mesmo fazendo reparos à sua atuação no caso, como fiz (o que, pelo visto, você e seus amigos ignoram), é a posição mais incômoda, mais difícil. O fato de eu expressar sobre o governo Lula ou o aquecimento global opiniões que você endossa não a obriga a acatar a minha posição sobre a disciplina católica. Quero crer que a defesa que faço de uma sociedade fundada no mérito e na hierarquia orienta o que penso sobre política e sobre religião. Tendo a achar que se trata de um todo coerente. Mas isso não implica que você deva acatar a minha interpretação dos eventos. De jeito nenhum!
Mas esses exemplos ainda não exploram os limites todos do que penso a respeito. Volto àquela imagem dos teoremas. E aqui o pensamento vai assumindo delicadezas um tanto perigosas. Querem ver? O que realmente testa a saúde do estado de direito? O tratamento que a sociedade dispensa aos chamados homens de bem ou aquele que dispensa aos criminosos? A resposta, nada óbvia, é esta: o efetivo estado de direito é testado com o tratamento dispensado aos criminosos. O valor positivo da democracia, sem dúvida, é traduzir a vontade da maioria; mas isso pode ser feito por outros regimes. A sua diferença está, então, no valor negativo: ela tem de proteger a minoria, aqueles que dissentem. Ou não é democracia.
Vejam que afirmação quase escandalosa: a liberdade e a tolerância são mais testadas, vá lá, pelas bobagens (ainda que supostas) e pelas opiniões, digamos, excepcionais, do que pelo consenso e pela média aceita, não é? Sim, claro: todos vivemos segundo códigos dados. Reconhecemos (ou arcamos com as conseqüências de não fazê-lo) como legítimos os limites que nos são impostos pela vida em sociedade. Dado isso, é uma missão alargar, se me permitem o clichê, as fronteiras do possível.
Certa feita, fiz algumas piadas com um tal , como é mesmo?, “ciclone extratropical”. E lá vieram os especialistas em ciclones: “Pô, pare de falar besteira e leia mais sobre ciclones”. Ora, diabos! Eu não!!! Dormiria na terceira página ou logo começaria a pensar em um milhão de coisas que acho mais interessantes. Só tinha feito uma crônica. Haverá algum maluco que me ache referência confiável em matéria de ciclones? Digo o mesmo sobre o aquecimento global. Sim, os aquecimentistas têm razão. Eu não entendo nada! Tudo o que escrevo a respeito é análise do discurso sobre o aquecimento global. Faço a crônica de uma época, não disputo o espaço com os especialistas em clima.
Entendo que muitos fiquem desgostosos quando afirmo que dom José Sobrinho, como autoridade eclesiástica, agiu de acordo com suas obrigações — embora, reitero, eu visse caminhos mais luminosos para expressar a doutrina. Mas rejeito, mesmo!, a crítica daquelas que dizem: “Pô, você poderia ter-se poupado (isso realmente me chegou) porque aí vão começar a pôr sob suspeita outras opiniões suas”. Mas Deus do Céu! Este sou eu. Desde quando eu me importo com suspeições? Os meus leitores, felizmente!, são donos do próprio nariz e das próprias opiniões. É claro que podem e devem discordar de mim. Já aconteceu tantas vezes.
Não aceito é que me digam — porque aí é obscurantismo — coisas como: “Ah, não fale sobre esse assunto; deixe dom José ou Santos Dumont para especialistas”. Ou ainda: “Pô, aí já é demais!” Na China totalitária, por exemplo, é perfeitamente possível escrever sobre os benefícios da iniciativa privada. Só não se pode falar em democracia pluripartidária. Porque “aí já é demais!”.
A propósito: quem será o Santos Dumont da China? Deve haver um. O que não há por lá é Diogo Mainardi.