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Reinaldo Azevedo

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A solitária multidão de um só Pessoa

Há 123 anos, num 13 de junho, nascia Fernando Pessoa. Segue a resenha que fiz para a VEJA do livro “Fernando Pessoa – Uma Quase Autobiografia”, do escritor pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho. Na seção “Avesso do Avesso” do blog, há um pequeno ensaio em que associo a obra do poeta português à do latino […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 11h39 - Publicado em 13 jun 2011, 19h24

Há 123 anos, num 13 de junho, nascia Fernando Pessoa. Segue a resenha que fiz para a VEJA do livro “Fernando Pessoa – Uma Quase Autobiografia”, do escritor pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho. Na seção “Avesso do Avesso” do blog, há um pequeno ensaio em que associo a obra do poeta português à do latino Virgílio. O texto está publicado no livro “Contra o Consenso“. Leiam a resenha.

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Fernando Pessoa, por Almada Negreiros

O poeta português Fernando Pessoa (1888-1935), que recusara uma cátedra de literatura inglesa em Coimbra, ganhava a vida traduzindo correspondência comercial para o inglês e o francês. Em 1928, a empresa em que trabalhava havia importado coca-cola e lhe encomendou o slogan de lançamento da bebida. Nos EUA, vendia-se “a pausa que refresca”. Ele tentou o que lhe pareceu menos frívolo: “Primeiro estranha-se; depois entranha-se”. Um dos maiores poetas da história ajudou a produzir um desastre comercial. A ditadura de Antônio Salazar, com a qual ele flertara, desancando-a depois, proibiu a venda. “Entranha-se?” Então é alucinógeno! A coca-cola só voltou ao país em 1977! Pessoa criou ainda um texto de inspiração metafísica para vender tinta para automóveis. Fiasco. “A vida prática sempre me pareceu o menos incômodo dos suicídios”, escreveu.

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Essa é uma das histórias de “Fernando Pessoa – Uma Quase Autobiografia”, do escritor pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho. Trata-se de um calhamaço de 734 páginas, de leitura agradável e fluente. É a mais completa e detalhada reconstituição que jamais se fez da vida do autor, talvez o poeta mais citado da língua portuguesa por aquilo que quase escreveu – “tudo vale a pena quando a alma não é pequena” – e por aquilo que não escreveu: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. No primeiro caso, é “se”, não “quando”. A segunda fala não é sua, mas do general romano Pompeu. Pessoa apenas a citou para criar a sua própria divisa: “Viver não é necessário; o que é necessário é criar.”

Grandeza e banalidade, ambições desmedidas e frustrações mortificantes, paixões visionárias e dificuldades para pagar as contas de uma existência modestíssima, tudo está relatado com rigor e obsessão documental, em especial o romance de muitos beijos e cartas, mas nenhum sexo, com Ophelia Queiroz. A moça teve de disputá-lo com os heterônimos, as personalidades poéticas em que escrevia. Incluindo os relativamente conhecidos Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Bernardo Soares e o próprio Pessoa, eram 127. Estudioso da astrologia, do ocultismo e do espiritismo, chegou a atribuir os seus escritos à mediunidade, embora considerasse que “o misticismo é apenas a forma mais complexa de ser efeminado e decadente”.

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A solitária multidão de um só Pessoa criou um marco insuperado, talvez insuperável, na literatura de língua portuguesa ou, mais amplamente, na literatura moderna. No ensaio “O que é um clássico?”, o poeta e crítico inglês T.S. Eliot afirma que o latino Virgílio (70 a.C-19 a.C.) era o único a merecer essa classificação porque foi a expressão da maturidade de uma cultura. Não basta ter talento; é preciso representar a consolidação de um anseio coletivo. O clássico não é só um gênio no uso da língua, mas encarna o próprio gênio da língua. Nesse particular ao menos, Pessoa foi o Virgílio Português – o heterônimo Álvaro de Campos, a propósito, nasceu no dia 15 de outubro, data do aniversário do poeta latino. Experimentaram, no entanto, uma diferença de perspectiva. O autor de Eneida produziu para um império triunfante; Pessoa vive o esplendor da decadência portuguesa – e isso, curiosamente, o torna verdadeiramente grande:
“Ah, quanto mais ao povo a alma falta/
Mais a minha alma atlântica se exalta (…)”

O livro de Cavalcanti atrai, sim, pelas infindáveis minúcias do cotidiano do poeta, mas faz também uma competente reconstituição da esfera intelectual em que vivia. Pessoa tinha consciência de sua grandeza, embora pudesse maldizer seus fracassos. Aos 24 anos, publica na revista A Águia o texto “A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada”. Antevia: “Prepara-se em Portugal uma renascença extraordinária, um ressurgimento assombroso (…). Dia e noite, em pensamento e ação, em sonho e vida, esteja conosco, para que nenhuma das nossas almas falte à sua missão de hoje, de criar o supra-Portugal de amanhã.” E chega ao ponto: “E isto leva a crer que deve estar para muito breve o inevitável aparecimento do poeta ou poetas supremos, desta corrente, e da nossa terra, porque fatalmente o Grande Poeta, que este movimento gerará, deslocará para segundo plano a figura, até agora primacial, de Camões”.

Era ele! Deixou uma obra – ela toda – que está à altura dessa ambição, com destaque para o livro “Mensagem”, expressão do gênio absoluto. E é ali que se lê: “Os Deuses vendem quando dão./ Compra-se a glória com desgraça./ Ai dos felizes, porque são/ Só o que passa!” Pessoa comprou a glória e, como se vê, não passa. E a felicidade?

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Nenhum dos seus 127 heterônimos tinha o que dizer no dia 22 de janeiro de 1920. Faltava luz no escritório em que estava em companhia de Ophelia, 19 anos – ele faria 32 no dia 13 de junho. Um candeeiro iluminava a cena. Antes de tomá-la nos braços, declara: “Oh, querida Ophelia, meço mal os meus versos; careço de arte para medir os meus suspiros, mas amo-te em extremo, acredita!”. Era Shakespeare, na boca de Hamlet, a declarar seu amor por Ofélia, a outra. Mau sinal. Começam um namoro. Ela chega a bordar um enxoval na esperança do casamento. No dia 29 de novembro, a moça põe fim àquela relação de quase castidade, que será retomada, nos mesmos moldes, em setembro de 1929 para findar em janeiro de 1930. Ophelia não gostava de Álvaro de Campos em especial, que a destratava. Um outro, Pero Botelho, não a poupou:“Ofélia de olhar cinzento/ E de alma a escorrer saudades/ Olha, vai para um convento../ Para um convento de frades.” Cruel.

Em 1985, ela contou, numa entrevista ao jornalista Ronald de Carvalho, que foi chamada ao hospital onde jazia o corpo de Pessoa naquele longínquo 1935. Fica a sós com o cadáver. Toma a mão direita dele entre as suas e lhe sussurra, então, o que não pôde dizer em vida. E vai embora. Ele exigia que o namoro dos dois fosse clandestino. Assim foi a despedida. Ophelia pediu que a informação só fosse publicada depois de sua morte, o que se deu aos 91 anos, no dia 18 de julho de 1991. Não terminou como a Ofélia louca, a de Shakespeare, “afogada num rio em que colhia flores”.

Pessoa era gay, como se especula? Não há evidências de que tenha tido caso com rapazes, como Mário de Sá-Carneiro e Antônio Botto. Tudo indica que morreu virgem. Botto, chegado ao escândalo e à maledicência, afirmou que “seu membro viril, muito pequeno, explicava sua abstinência envergonhada”. Numa das comunicações que Pessoa dizia mediúnicas, há uma referência ao “Homem sem virilidade! Homem com clitóris em vez de pênis!” Mas podia ser tudo literatura. Já havia dito ter “temperamento feminino e inteligência masculina”.

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Cavalcanti jamais se desgruda da personagem singular, e isso traz algumas revelações. Saiba o leitor que conhece o poema “Tabacaria” que o estabelecimento comercial realmente existia, assim como existiram suas personagens: a “pequena que come chocolates” era a sobrinha Manuela; o “Alves” era mesmo o proprietário da loja, Manuel Ribeiro Alves; o “Esteves sem metafísica” era um amigo da família, declarante depois do assento de óbito do próprio Pessoa. Isto mesmo: o homem que testemunhou legalmente a morte do autor de “Tabacaria” ficou eternizado naquele que, para muitos, é sua obra-prima.

Pessoa recorria a fatos e pessoas de sua realidade imediata ou a aspectos da vida dos autores que lia para compor seu universo paralelo. Isso levou Cavalcanti a afirmar, o que tem gerado algum ruído, que era um poeta sem imaginação. Ele não se refere, é evidente, àquilo que entendemos por imaginação literária como sinônimo de gênio criativo. Digamos que o poeta fantasiasse as circunstâncias menos do que se supunha. Afinal, a maior prova de imaginação, naquele sentido da criação, ele deu ao transformar uma vida banal numa lenda. E assim foi até o último minuto.

No leito de morte, que se deu no dia 30 de novembro de 1935, pediu um papel e um lápis e deixou suas últimas palavras, num inglês arcaizante: “I know not what tomorrow will bring” – “Eu não sei o que trará o amanhã”.

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E se foi para não passar.

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