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Reinaldo Azevedo

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A PATIFARIA MULTICULTURALISTA RESOLVEU REESCREVER A OBRA DE LÉVI-STRAUSS

Alguns leitores me perguntaram se não escreveria nada sobre Claude Lévi-Strauss, que morreu no último dia 30, menos de um mês antes de completar 101 anos. Foi pura falta de tempo. Mas vamos lá. Não escrevo, evidentemente, como especialista, menos ainda como profundo conhecedor de sua obra. Li dois livros: Antropologia Estrutural e Tristes Trópicos […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 16h30 - Publicado em 5 nov 2009, 16h48

Alguns leitores me perguntaram se não escreveria nada sobre Claude Lévi-Strauss, que morreu no último dia 30, menos de um mês antes de completar 101 anos. Foi pura falta de tempo. Mas vamos lá. Não escrevo, evidentemente, como especialista, menos ainda como profundo conhecedor de sua obra. Li dois livros: Antropologia Estrutural e Tristes Trópicos — mais do que boa parte dos acadêmicos da área… Quem leu tudo do homem — e, na verdade, tudo sobre quase tudo — é Diogo Mainardi. Li o primeiro porque é obrigatório para quem pretende entender um pouco melhor o chamado “estruturalismo”, importante para quem estudou lingüística. O segundo por curiosidade e prazer.

A obra de Lévi-Strauss e vastíssima. E, quanto mais vasta, maiores as distorções, especialmente a promovida por aqueles que pretendem atribuir a Lévi-Strauss o que vai em seus próprios cérebros travessos. Não tenho a intenção aqui de dizer qual é “a” leitura correta do seu pensamento. Mas posso dizer, com certeza, qual é a leitura estupidamente errada que ganhou corpo nesses dias que se seguiram à sua morte. Cansei de ver textos por aí — e também entrevistas de supostos epígonos — sustentando que Lévi-Strauss demonstrou que “não existe uma cultura superior à outra”;  ou que “todas as culturas são válidas”; ou que “todas as culturas são equivalentes” e coisas afins.

Ou seja: submeteram Lévi-Strauss à patifaria multiculturalista. Ele não afirma nada disso. Isso quem afirma são essas pessoas. O que ele fez foi demonstrar que civilizações diferentes — e não “todas as civilizações”, já que não estudou todas elas — são dotadas de elementos estruturais correspondentes: mecanismos de controle social, de reprodução de costumes, de manutenção da tradição têm funcionamento semelhante. Na verdade, seguia os passos do Émile Durkheim de As Formas Elementares da Vida Religiosa.

Falei de Durkheim aqui e deste livro no dia 26 de fevereiro de 2007. Vale a pena reproduzir um trecho porque ajuda a entender o debate:
Na VEJA desta semana, escrevo um artigo sobre religião.(…)  Falo da religião como um dado da cultura e uma das teorias do conhecimento. E me fixo numa das teses do sociólogo francês Émile Durkheim no livro As Formas Elementares da Vida Religiosa, um clássico sobre o tema, de leitura obrigatória para quem quer falar de religião. A propósito: as pessoas são livres, é óbvio, para tratar do assunto sem terem lido esse livro ou outro qualquer. A ignorância propositiva pode ser falta de delicadeza, mas não pode ser proibida…
O livro é um estudo de caso — “o sistema totêmico da Austrália” —, mas, sociólogo que é, ele busca entender as estruturas de funcionamento do pensamento religioso, de qualquer religião.
A primeira sacada importante de Durkheim diz respeito à relação da religião com o “fato extraordinário”. Ele demonstra, com elegância, que “as concepções religiosas têm por objeto, acima de tudo, exprimir e explicar não o que há de excepcional e anormal nas coisas, mas, ao contrário, o que elas têm de constante e regular”.  EM QUALQUER CIVILIZAÇÃO. Num outro momento, com grande senso irônico, lembra que muitos legisladores acreditam que se pode mudar um sistema social da noite para o dia “assim como tantas religiões admitem que a vontade divina criou o mundo do nada”. E emenda: “No que concerne aos fatos sociais, temos ainda uma mentalidade de primitivos”. Durkheim morreu em 1917, ano da Revolução Russa, quando alguns senhores acharam que poderiam mudar a natureza da sociedade e dos homens por um ato olímpico da vontade — mais olímpico do que Deus.

Faço esta citação porque Lévi-Strauss seguiu os passos de Durkheim, tentando descrever a função dos mitos e dos ritos nas sociedades, seu funcionamento, estruturas análogas em civilizações distintas, MAS SEM ESSE JUÍZO DE VALOR QUE SE PASSOU A FAZER NO BRASIL: “Para ele, todas as civilizações eram iguais…” Ou bobagens do gênero. Aliás, ele não foi nada, como direi?, manso com a “civilização brasileira”. Tratei deste assunto num artigo para a VEJA em 2007, no qual abordava a “civilização dos morros”, no Rio, que tem custado tão caro à cidade e ao país. Leiam trechos:

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Perguntaram certa feita ao antropólogo francês Lévi-Strauss (na verdade, nascido em Bruxelas) se ele havia se identificado com os índios que estudara. “De modo nenhum!”, respondeu. Os nossos antropólogos da maldade não chegam exatamente a se identificar com a “civilização” do morro e da periferia, mas têm por ela um respeito basbaque e reverencial. Lutam para preservá-la da nefasta influência da cultura central, esta nossa – vocês sabem, corroída pelo materialismo, pelo capitalismo e por um moralismo de fachada.

Que coisa formidável! Estamos diante da defesa de uma nova forma de apartheid, um dos refúgios do “pensamento” da esquerda contemporânea. Se a tentativa de ver a “cultura da periferia” como um sistema com valores próprios é só coisa de gente de miolo mole, uma banalidade, essa visão “preservacionista” da civilização da miséria pode assumir uma face cruel quando o assunto é, por exemplo, segurança pública. A polícia, segundo os antropólogos da maldade, estaria proibida de subir o morro sem o prévio consentimento da “comunidade”, ou isso caracterizaria uma “invasão”. A disposição de enfrentar o crime, que seqüestra as áreas pobres das cidades, é encarada como um ato de guerra, uma hostilidade a um país estrangeiro. E os mortos nos confrontos – exceção feita aos policiais, os “soldados invasores” – serão sempre vítimas inocentes do país agressor.

Lévi-Strauss poderia ensinar a essa gente que os costumes e hábitos de superfície das sociedades – e, pois, também dos morros e das periferias – são manifestações de estruturas de poder. Parecem-me indecentes os protestos de artistas contra a ação da polícia no Rio em contraste com o seu silêncio então cúmplice diante do fato de que os soldados do tráfico matam livre e impunemente nas favelas. A estupidez reacionária desses progressistas chega ao ponto de considerar que isso é coisa “lá deles”, da “outra cultura”, “matéria da autodeterminação dos povos”. Será que devemos reagir ao assassinato dos nossos pobres com o mesmo distanciamento antropológico com que reagimos ao infanticídio entre os ianomâmis?

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É improvável que Lévi-Strauss retorne ao Brasil, repetindo a façanha dos anos 30, quando veio dar aula na Universidade de São Paulo. Agora com 99 anos, completados neste 28 de novembro, é compreensível que tenha outras prioridades. Se o fizesse, talvez aproveitasse para adensar ainda mais a sua obra-marco, Antropologia Estrutural, ou, então, entre a melancolia e o escárnio, perceberia que fez muito bem em esculhambar o país em Tristes Trópicos, obra de 1955 com apontamentos sobre comunidades indígenas brasileiras e notas sobre a nossa cultura urbana. Sobrou até para os universitários, como não? Nos anos 30, eles demonstravam certo desprezo pelos livros de referência, preferindo os resumos. Sua curiosidade intelectual se igualava a uma inquietação gastronômica, e o que parecia inteligência era só disputa por prestígio e vanglória…

Retomo
Assim, que sobre o registro: é mentira que a obra de Lévi-Strauss autorize que se decrete, como é mesmo?, a “igualdade” entre as civilizações. Se ele não fez juízo de valor para decretar que uma é melhor do que a outra, tampouco o fez para proclamar a ausência de uma hierarquia valorativa. Como Durkheim, notou que o que era muito complexo numa dada civilização poderia ser resumida à sua forma — ou estrutura — elementar em outras. E esse “elementar” pode ser lido como sinônimo de “primitivo”.

Lévi-Strauss morreu, e os politicamente corretos e multiculturalistas resolveram se apropriar de sua obra. Fenômeno parecido, e até mais vigarista, aconteceu com o liberal Norberto Bobbio, seqüestrado pelas esquerdas. Assim, vejam Lévi-Strauss sem preconceitos. Boa parte das coisas que andam dizendo por aí que ele escreveu é só juízo perturbado daqueles que gostariam que ele as tivesse escrito.

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