A morte do embaixador americano na Líbia nas brumas do “Inverno Árabe”. Ou: As bobagens de Obama e a pergunta tonta de Hillary. Ou ainda: Não pra culpar o “Joirjibúxi”?
Radicais islâmicos mataram o embaixador americano na Líbia, Jay Christopher Stevens, e três outros diplomatas num ataque ao consulado dos Estados Unidos em Benghazi, epicentro da guerra civil que levou a Otan a derrubar o ditador Muamar Kadafi. Vamos lá. Empreguei pela primeira vez a expressão “inverno árabe”, numa alusão irônica à suposta “Primavera”, num […]
Radicais islâmicos mataram o embaixador americano na Líbia, Jay Christopher Stevens, e três outros diplomatas num ataque ao consulado dos Estados Unidos em Benghazi, epicentro da guerra civil que levou a Otan a derrubar o ditador Muamar Kadafi. Vamos lá.
Empreguei pela primeira vez a expressão “inverno árabe”, numa alusão irônica à suposta “Primavera”, num texto publicado no dia 3 de abril de 2011. E, desde essa data, o fiz muitas outras vezes. Não sou entusiasta da dita-cuja e, nesse particular, estou quase sozinho. Creio que um único amigo, professor respeitadíssimo (e por excelentes motivos!), compartilha dos meus muitos senões. No mais, nesse particular, vivo em quase solidão. Nunca tive e não tenho dúvida de que a dita “Primavera Árabe” prepara o inverno fundamentalista — que já exibe seus sinais nos países que passaram ou estão passando pela “revolução”. Já escrevi muito a respeito. “O País dos Petralhas II — O inimigo agora é o mesmo”, que chega às livrarias amanhã, traz textos sobre o assunto.
Não tinha, obviamente, simpatia pelos ditadores que caíram nem tenho pelos ditadores que restaram — ou pelos que foram entronizados, ainda que possam executar a mímica de um regime democrático. Entre a ditadura laica, que mantenha o terror debaixo de chicote, e um regime autoritário teocrático ou teocratizante, que flerte com terroristas, a escolha mais moral me parece óbvia, ainda que eu não prefira viver nem em um nem em outro. Em momentos assim, alguém sempre se exalta: “Então aqueles povos não têm o direito à democracia?”. Claro que têm! Mas eles a querem? Ela é um valor que eles realmente prezam?
Sob o governo de Barack Obama, os EUA foram vendo cair aliados históricos na região ou, vá lá, “neoaliados”, como Kadafi. Bastaram dez dias de protestos no Egito para que a Casa Branca puxasse o tapete de Hosni Mubarak. Alguém poderia dizer: “É uma ilusão achar que os americanos poderiam fazer alguma coisa…”. Talvez não! Mas não se joga um aliado na boca dos leões com essa facilidade, a menos que se tenha um plano. E Obama não tinha nenhum. O Egito é hoje governado pela Irmandade Muçulmana — que aprendeu a fazer um discurso moderado enquanto vai minando as bases do que havia de laicismo no país. E estamos falando do Egito, celeiro original de boa parte do extremismo muçulmanos. O resultado é evidente. A mim me basta constatar que o saldo da dita Primavera é uma hostilidade hoje maior do que antes aos Estados Unidos e a Israel.
De todos os erros, o cometido na Líbia foi o mais brutal. Erro e, mais do que isso, promoção da desordem internacional. A ação dos EUA e da Grã-Bretanha na Líbia, por intermédio da Otan, desrespeitou a resolução da ONU de maneira vergonhosa. Conforme demonstrei aqui no dia 24 de agosto do ano passado, o documento (íntegra aqui) cobrava um cessar-fogo de Kadafi, mas nada dizia sobre os “rebeldes”. Estes, por acaso, nunca ameaçaram civis? Foi redigida numa linguagem rebarbativa o bastante para permitir quase qualquer coisa. Estava escrito que todos os esforços seriam feitos para proteger a população. “Todos?” Quais? A Otan operou em parceria com os ditos rebeldes. Bombardeios aéreos antecediam os avanços por terra. Mais: a organização entregou armas aos rebelados. Não tinha autorização para fazer nem uma coisa nem outra. Quando a casa de Kadafi foi atacada, na suposição de que era um alvo militar, o objetivo era assassiná-lo, o que também não estava na resolução. Quando ele e seu filho foram caçados e mortos, embora tenham sido presos com vida, a patrocinadora da barbárie foi a… Otan.
Mas quem eram, afinal de contas, os “revolucionários” de Banghazi? Homens que só queriam democracia, liberdades, pluralismo — boas razões, sem dúvida, para que a Otan metesse bala nos partidários dos tiranos? Não! Benghazi era também o centro de resistência — vejam que tragédia! — ao que poderia ser o único aspecto aceitável em Kadafi: o seu viés laico — e isso nada tem a ver com a brutalidade do seu regime.
Os jihadistas lutaram pela “libertação” da Líbia. Sim, senhores! O extremismo islâmico e a Otan estavam do mesmo lado (leia post aqui) para derrotar Kadafi. A última vez que os EUA decidiram se juntar a essa gente para uma ação conjunta foi, deixem-me ver…, no Afeganistão, depois da invasão soviética, ocorrida em 1979. A Al Qaeda começou ali. Um dos homens que foram treinados pelos EUA para combater os soviéticos foi… Osama Bin Laden! Se americanos e jihadistas estão do mesmo lado, quero saber quem é a terceira personagem que justifica essa heterodoxia.
Uma pergunta feita por Hillary Clinton, depois da tragédia de Benghazi, expõe os desacertos da política externa americana de forma clara e inquestionável: “Como isso pôde ter acontecido em um país que ajudamos a libertar, na cidade que ajudamos a salvar?”. É a pergunta de uma tola. Ela quer saber por que os terroristas não são seres gratos e justos. Antes que avance, uma informação: Jay Christopher Stevens negociou pessoalmente com os carniceiros de Benghazi o apoio dos Estados Unidos à “revolução”, contra o carniceiro Muamar Kadafi.
Obama e Hillary, na sua clarividência, trocaram um carniceiro que havia começado a combater o terrorismo por outros que têm os terroristas como aliados. Como trocaram a ditadura laica de Mubarak pela ditadura “suave” da Irmandade Muçulmana.
O extremismo religioso progride na Líbia — país, reitero, que teve o governo derrubado pela Otan, não pelos ditos “rebeldes” — sob o olhar cúmplice do novo poder. Leiam este trecho de reportagem de Lourival Santanna, do Estadão, publicado no dia 9 deste mês. Volto em seguida.
As máquinas fizeram o trabalho à luz do dia, enquanto uma pequena multidão assistia, incluindo agentes do Comitê de Segurança Suprema (CSS) – encarregado de manter a ordem na Líbia pós-Kadafi -, que não fizeram nada para conter a destruição. Em poucas horas, o mausoléu de 500 anos de Sidi Adb as-Salam al-Asmar e uma biblioteca adjacente, em Zliten, estavam arrasados. Sidi foi um santo da seita muçulmana sufista, considerada herética pelos conservadores.
Isto foi no dia 25. No dia seguinte, encorajados pelo êxito da operação, os salafistas, corrente radical que prega a “purificação” do Islã, repetiram a cena perto do centro de Trípoli, destruindo o santuário sufista de Al-Shaab al-Dahman. Eles seguiam uma fatwa (decreto religioso) do clérigo saudita Mohamed al-Madkhalee, ordenando a dessacralização de todos os santuários venerados pelos sufistas.
Panfletos circulam nas universidades ordenando que as alunas não usem roupas apertadas e cubram a cabeça. Madkhalee ensina que uma moça não pode ter aulas nem de religião de um professor que não seja seu parente, e nem mesmo de véu, pois “com um olhar ela pode seduzi-lo”.
Aparentemente os salafistas resolveram pôr o decreto em prática após sua derrota nas eleições para o Congresso Nacional, há um mês, nas quais nenhum grupo radical elegeu representantes, e a Irmandade Muçulmana, que tem uma agenda próxima à deles, obteve apenas 17 das 120 cadeiras (outras 80 foram destinadas a independentes). A Aliança das Forças Nacionais, liderada pelo ex-primeiro-ministro interino Mahmud Jibril, que se declara um religioso moderado, venceu com 39 cadeiras.
De acordo com um repórter da revista Newsweek, um agente do Ministério do Interior que acompanhava a demolição em Trípoli disse que tinha recebido “instruções” para executá-la e afirmou que os sufistas praticam “magia negra”: “Limpamos o leste e agora vamos limpar Trípoli.”
O ministro do Interior, Fawzi Abdel-Al, admitiu sua impotência: “Teríamos de usar armas para conter esses grupos. Eles são uma força grande na Líbia em termos de contingente e armas. Não vou entrar numa batalha perdida e deixar que pessoas sejam mortas por causa de um túmulo. Se todos os santuários na Líbia forem varridos e ninguém for morto, é um preço que estamos dispostos a pagar.”
Voltei
Entenderam? A dita autoridade, muito humanista, não vai deixar que pessoas sejam mortas “por causa de um túmulo”!!! O próprio governo se torna agente da intolerância, a serviço do extremismo. Wanis al-Sharif, ministro do Interior da Líbia, pronunciou-se, sim, sobre a morte do embaixador. Nestes termos: “Tiros vindos de dentro do consulado causaram a ira dos manifestantes. Os americanos não tomaram precauções necessárias”. Vale dizer: a culpa é da vítima. E aproveitou para atribuir os assassinatos a partidários de Kadafi…
É só o começo do inverno. E, desta vez, nem dá para culpar o, como era mesmo o nome dele?, “Jorjibúxi”