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Reinaldo Azevedo

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A MORTE DE SARAMAGO E O DIREITO DA HUMANIDADE À VIDA

Morreu o escritor português José Saramago, aos 87 anos. Lamento a morte de qualquer um, também a de Saramago, motivo de orgulho para os falantes da língua portuguesa. Quem recorrer ao arquivo vai saber que eu estava muito longe de ser fã de sua obra.  Nada mudou. As ditas “inovações” que ele introduziu na literatura […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 15h02 - Publicado em 18 jun 2010, 16h50

Morreu o escritor português José Saramago, aos 87 anos. Lamento a morte de qualquer um, também a de Saramago, motivo de orgulho para os falantes da língua portuguesa. Quem recorrer ao arquivo vai saber que eu estava muito longe de ser fã de sua obra.  Nada mudou. As ditas “inovações” que ele introduziu na literatura — que novidades não eram — nunca me interessaram. A sua tão elogiada “técnica”, para mim, depois de algumas páginas, iam se transformando num maneirismo.

Não li seu último livro, A Viagem do Elefante, elogiado por muita gente que respeito. Já não tinha lido o anterior… De fato, mesmo indo contra o meu gosto e cumprindo uma missão, segui me esforçando até O Evangelho Segundo Jesus Cristo, uma das manifestações anti-religiosas mais boçais que já li — um livro primitivo na forma e simplório no conteúdo.

Há quem diga que exagero nas restrições de natureza ideológica e deixo de lado “o escritor”. Pois é… Será mesmo verdade? Você pode admirar um quadro em razão da técnica empregada, mesmo não dando bola para a narrativa — e, nas artes plásticas contemporâneas, com freqüência, não há narrativa nenhuma, limitando-se o artista a um diálogo com a própria arte. É uma chatice, um aborrecimento e uma irrelevância, mas é assim.

Na prosa literária, a especulação formal do artista é importante, como em toda arte.  Mas um mero exercício de técnica pode ser feito por especialistas, em oficinas acadêmicas. Tenho cá as minhas ortodoxias. Uma delas é indagar: “O escritor recorreu a tais meios para me dizer exatamente o quê?”  E os “quês” de Saramago não me interessavam.  Tome-se o exemplo do aplaudido Ensaio Sobre a Cegueira.

Não se trata apenas de uma abordagem pessimista do homem. Até aí… Com alguma freqüência, há mais inteligência no pessimismo do que no otimismo. Não consigo ler esse livro sem constatar que há nele uma escolha que é também de natureza política, ética, ideológica: deixados à própria sorte, somos uns monstros. “E não somos?”, indagará alguém. É possível que sim. Mas quem há, então, de nos conduzir a um caminho mais justo e mais solidário — justiça e solidariedade que sempre entendi fermentos da pregação de Saramago? Seria injusto dizer que a resposta está no “Ensaio”. Não! A resposta está distribuída ao longo da obra, em entrevistas, na sua atuação que também tinha uma dimensão política.

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E é disso que trata um texto que escrevi em novembro de 2008 — um  pequeno vermelho-e-azul feito a partir de uma entrevista que ele concedeu à Folha, de que reproduzo trechos. É o melhor que posso fazer em sua homenagem: lembrar por que não era um admirador de sua obra nem de suas escolhas políticas.

HUMANIDADE
A história da humanidade é um desastre contínuo. Nunca houve nada que se parecesse com um momento de paz. Se ainda fosse só a guerra, em que as pessoas se enfrentam ou são obrigadas a se enfrentar… Mas não é só isso. Esta raiva que no fundo há em mim, uma espécie de raiva às vezes incontida, é porque nós não merecemos a vida. Não a merecemos. Não se percebeu ainda que o instinto serve melhor aos animais do que a razão serve ao homem. O animal, para se alimentar, tem que matar o outro animal. Mas nós não, nós matamos por prazer, por gosto. Se fizermos um cálculo de quantos delinqüentes vivem no mundo, deve ser um número fabuloso. Vivemos na violência. Não usamos a razão para defender a vida; usamos a razão para destruí-la de todas as maneiras -no plano privado e no plano público.
Saramago não é o primeiro comunista a achar que a humanidade não tem direito à vida. Antes dele:
– Stálin também achava: matou 35 milhões;
– Mao Tse Tung também achava: matou 70 milhões;
– Pol Pot também achava: matou 3 milhões;
– Fidel Castro também achava e acha: matou 97 mil (numa ilhota que hoje tem 11 milhões de habitantes).

E os comunistas mataram em escala industrial, mundo afora, com o apoio hormonal de Saramago.

Imagine, leitor, se o escritor português fosse um cara de direita e dissesse o que vai acima. Em vez do tratamento de gala que lhe é dispensado, com salamaleques e rapapés, pediriam que fosse expulso do Brasil. Na prática, está pedindo o extermínio dos seus inimigos em nome da “humanidade” – que é rigorosamente o que fizeram os seus ídolos, acima elencados.
Ah, claro, claro. Saramago faz a apologia da morte, mas dirão que o truculento sou eu. Truculento e arrogante, é óbvio.

MARXISMO HORMONAL
Desde muito novo orientei-me para a consciência de que o mundo está errado. Não importa aqui qual foi o grau da minha militância todos esses anos. O que importa é que o mundo estava errado, e eu queria fazer coisas para modificá-lo. O espaço ideológico e político em que se esperava encontrar alguma coisa que confirmasse essa idéia era, é claro, a esquerda comunista. Para aí fui e aí estou. Sou aquilo que se pode chamar de comunista hormonal. O que isso quer dizer? Assim como tenho no corpo um hormônio que me faz crescer a barba, há outro que me obriga a ser comunista.
Então é mesmo doença. Poucos se dão conta de que essa visão autoritária, tirana mesmo, de mundo, está presente também na sua literatura. Saramago acredita que um partido tem de ser o olho dos cegos. Lixo político e moral.

CRISE ATUAL
Marx nunca teve tanta razão quanto agora. O trabalho constrói, e a privação dele é uma espécie de trauma. Vamos ver o que acontece agora com os milhões de pessoas que vão ficar sem emprego. A chamada classe média acabou. Ou melhor: está em processo de desagregação. Falava-se em dois anos [para a recuperação da economia depois da crise financeira]; agora já se fala em três. Veremos se Marx tem ou não razão.
Por que ele fala tanta porcaria? Tenho lembrado, sabem os leitores, nos eventos de O País dos Petralhas, país afora, que o tão satanizado “modelo neoliberal” tirou mais pessoas da miséria em 20 anos do que os 200 anos anteriores do capitalismo. Marx não tem uma só linha que sirva para explicar a crise moderna. Por que alguém não lhe perguntou de que livro ele está falando ou a que trecho da obra marxiana ele se refere? É uma pergunta que a Folha de 20 anos atrás faria.

DEUS E BÍBLIA
Por que eu teria de mudar [a concepção de Deus após a doença]? Porque supostamente me salvou a vida? Quem me salvou foram os médicos e a minha mulher. E Deus se esqueceu de Santa Catarina? Não quero ofender ninguém, mas Deus não existe. Salvo na cabeça das pessoas, onde está o diabo, o mal e o bem. Inventamos Deus porque tínhamos medo de morrer, acreditávamos que talvez houvesse uma segunda vida. Inventamos o inferno, o paraíso e o purgatório. Quando a igreja inventou o pecado, inventou um instrumento de controle, não tanto das almas, porque à igreja não importam as almas, mas dos corpos. O sonho da igreja sempre foi nos transformar em eunucos. A Bíblia foi escrita ao longo de 2.000 anos e não é um livro que se possa deixar nas mãos de um inocente. Só tem maus conselhos, assassinatos, incestos…
É possível fazer contraposições inteligentes e civilizadas à Igreja Católica e a Deus. As de Saramago são coisas de um ateu vulgar – a mesma vulgaridade anti-religiosa e boçal de O Evangelho Segundo Jesus Cristo. O que me incomoda acima não é seu ateísmo, mas a sua tolice tagarela. Saramago não precisaria acreditar em Deus para entendê-lo, ao menos, como um dado da realidade cultural e da experiência espiritual. No caso de Santa Catarina, Deus pode estar, por exemplo, na determinação que leva aquelas pessoas a recomeçar do zero. E no cuidado com que oram por seus mortos. A fé que nos tira da desesperança e da morte em vida será sempre libertadora. Reconhecê-lo não é, sr. Saramago, matéria de crença, mas de atenção aos muitos matizes da vida humana.

É isso aí. Talvez ainda volte ao assunto hoje. Vamos ver.

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