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Reinaldo Azevedo

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Blog do jornalista Reinaldo Azevedo: política, governo, PT, imprensa e cultura

A dissonância no coração das coisas

– Ele era assim tão bom?– É preciso distinguir o Bem do Mal– O relativismo é a morte da civilização– O certo e o errado; o pecado e o perdão– O primeiro caso: Renan Calheiros– O segundo caso: o Complexo do Alemão– O terceiro caso: as pílulas de Temporão– A dissonância no coração das coisas […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 22h20 - Publicado em 1 jul 2007, 07h43
– Ele era assim tão bom?
– É preciso distinguir o Bem do Mal
– O relativismo é a morte da civilização
– O certo e o errado; o pecado e o perdão
– O primeiro caso: Renan Calheiros
– O segundo caso: o Complexo do Alemão
– O terceiro caso: as pílulas de Temporão
– A dissonância no coração das coisas

Alguns leitores que não conheciam a obra do poeta Bruno Tolentino me perguntam por que falo tanto dele, se ele era assim tão importante. Era, sim. Bruno era um dos poucos representantes de um país que já chegou a ter hierarquia de valores e que conseguia distinguir o Bem do Mal, o certo do errado, o legal do criminoso. Seu ofício era a poesia, mas ele era também um pensador. Estamos nos perdendo numa zona cinzenta de relativismo, que é, em certa medida, o oposto da civilização. O homem se faz, como espécie e como indivíduo, de escolhas. A cada vez que dizemos um “sim” ou um “não”, pagamos o preço de algumas perdas. Bruno sabia disso.

Como já lhe disseram sua mãe e seu pai em algum momento, leitor amigo, não se pode ter tudo, ainda que o ser, em sua consciência, abrigue todas as possibilidades e goste de imaginar uma vida sem limites. Por isso somos todos tão sujeitos ao erro (para os que não crêem) e ao pecado (para os que crêem). Por isso somos tão falíveis. Por isso, no caso do catolicismo (falo mais daquilo que conheço, mas certamente não é a única religião a fazê-lo), Deus perdoa aquele que está sinceramente arrependido. Porque Ele conhece o fundo de nossa fraqueza.

Mas não podemos ser fracos profissionais ou fazer profissão de fé dessa tibieza, reiterando no erro, vivendo sempre da oportunidade. A má consciência é um risco que nos espreita sempre, tanto aos que têm como aos que não têm fé; tanto aos que fazem as suas escolhas pensando num homem transcendente como aos que o vêem como uma construção cuja verdade é revelada pela história. Em suma, falo de princípios, de alguns pilares sobre os quais está construído o edifício da nossa vida e que nos permitem dizer: “Isso eu faço; isso não”. Operar essas escolhas é, quero crer, amadurecer, crescer, envelhecer com dignidade, tornando o nosso coração a cada dia mais paciente para tudo o que vamos perdendo, e não é pouca coisa, pelo caminho.

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Falo de indivíduos, de mim — em certa medida, sempre que escrevemos, falamos de nós mesmos —, mas falo também do Brasil. Vocês sabem que Céu e Inferno são simbologias fortes e ainda presentes no catolicismo. Se me perguntassem como imagino o inferno, a minha resposta seria mais ou menos assim: “É onde não há qualquer hierarquia ou senso de prioridade; é onde as verdades são todas horizontais; é a selva escura dantesca onde a luz não pode mais definir contornos, e todas as distinções se anulam; é o lugar onde a razão não incide para distinguir valores; o Inferno é o lugar da igualdade absoluta, em que todas as vontades podem ser exercidas; o Inferno é o reino da plena liberdade — e, portanto, da imposição da lei do mais forte; é onde não há interdição nem proibição; é o Reino da Morte”.

Primeiro caso: o Senado
A política brasileira se tornou, assim, maligna, infernal, no sentido que abordo aqui. Muitos do que falam hoje em nome de uma causa pública — seja no Congresso, seja na imprensa, para citar dois palcos importantes — começam por não permitir que a luz da razão distinga as diferenças. Não oferecem a seus “oprimidos” um mundo estruturado em noções de certo e errado. Ao contrário: toda interdição, toda tradição, toda hierarquia são tratadas como ídolos que podem — e, sobretudo, devem — estar sujeitos às vozes das maiorias, que se tornam, em si mesmas, um valor, pouco importando o que queiram ou digam. O universal vai cedendo lugar ao particular, ao restrito, ao mesquinho. Vejam lá o Senado Federal. O que é aquilo senão o triunfo do relativismo, da moral de ocasião, que serve aos assaltantes do estado e que é tratado por certo pensamento cínico como realismo político? Reparem que a imprensa, ainda que seja, de fato, quem se dedica à investigação, tem sido comedida, tímida.

O Mal nos contaminou e está mudando a natureza das instituições. Chamo, aqui, de “mal” justamente essa incapacidade de evocar uma tradição abstrata, puramente valorativa, para dizer: “Isso não!” Quando é que jornais, TVs, vozes que representam correntes significativas da opinião pública dirão a Renan Calheiros: “Basta, meu senhor!”? Os gregos não tinham pena prevista para o parricídio porque era considerado um crime inconcebível: era o nefando! Qual é o nefando da sociedade brasileira? Não há. Somos tolerantes com a nossa própria desgraça, com o nosso próprio destino infeliz.

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Segundo caso: expedição à favela
Querem outro exemplo escandaloso? A operação policial no chamado Complexo do Alemão nem havia terminado, e previ aqui a grita de boa parte da imprensa brasileira. Contra os traficantes? Claro que não! Contra a Polícia! Há uma boa chance de que alguns de seus homens tenham cometido e cometam excessos, e eles devem ser noticiados, denunciados, apurados, punidos. Mas leio os jornais, sobretudo os de São Paulo, e o que vejo é 80% das narrativas dedicadas à demonização da ação policial. Como a imprensa não sobe o morro a não ser nessas circunstâncias, pouco ou nada se sabe do cotidiano das favelas entregues ao crime organizado, ao narcotráfico. Na prática, na hora da escolha, esses setores da imprensa optam pela zona cinzenta. A polícia é vista como uma interventora.

Por quê? Porque o valor que organiza a intervenção da Polícia no morro está sub judice — um juízo que é ideológico. No fundo, considera-se que ela é a força de repressão de uma sociedade que cria exclusões — como se a isso se dedicasse o tempo inteiro, sem nada a ser defendido. A um repórter do Estadão (neste domingo), um garçom diz que saiu da favela para trabalhar. Quando voltou, seu videocassete havia sumido, e uma granada havia explodido dentro de sua casa. Vizinhos juram que foram os policiais. “Como isso poderia acontecer se quem tem granada são os traficantes?”, indagou o jornalista. Eles não sabem… Alguém acredita que homens da PMs, da Polícia Civil ou da Força Nacional de Segurança subam o morro com granadas escondidas? Isso faz sentido? E os relatos se estendem. Tudo tão convincente, que o repórter do Estadão não resistiu e escreveu: “O tom de conversa entre vizinhos reforçou a impressão de que os depoimentos eram verdadeiros.”

Pronto! É uma “impressão”, ele diz. Mas é também uma pequena derrota da polícia, convenham. E como ele teve acesso ao morro? Uma ONG, a AfroReggae, facilitou as coisas. Segundo se entende, ela se encarregou de anunciar a presença da reportagem. A informação chegou aos pombos-correio do tráfico, que a levaram aos chefes. Para evitar qualquer problema, o jornalista passou a circular com uma camiseta da ONG, respeitada, informa a reportagem, tanto pela Polícia como pelos bandidos. Vejam aí: é o país imoral, da zona cinzenta. O AfroReggae, suponho, deve ser respeitado pela Polícia porque não atrapalha o seu trabalho. Mas deve merecer o respeito dos traficantes pela mesma razão…

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Parece não ter ocorrido ao repórter que ficou com a “impressão” de que os relatos sobre os desmandos da Polícia eram verdadeiros que sua amostra estava viciada. O seu ouvido tinha deixado de ser independente no momento mesmo em que pôs a camiseta. Terá ele pensado, em sua expedição, que os moradores que se opõem aos traficantes — suponho que seja a larga maioria — ficaram quietos em seu canto, intimidados, com medo justamente dos donos do lugar, os mesmos que lhe cobraram envergar um uniforme para andar no morro? Parece que não. Observem: se a condição para entrar lá era aquela, havia duas opções: aceitar ou não. Feitas as ponderações, se ele optou por entrar, que, ao menos, deixasse de lado a sua “impressão”, chamando a atenção do leitor para o fato de que estava ouvindo apenas depoimentos “autorizados”. Se era proibido, porque era, dizer o contrário do que se disse, que peso tem o que foi dito?

Terceiro caso: a legalização do aborto
Na ditadura, havia muito medo da lei e, sobretudo, do que não era lei, fossem os riscos reais ou imaginários. Não era um bom país para se viver — ditaduras, não importam suas características, são sempre nefastas. Hoje em dia, experimentamos o contrário: as leis existem; emanam do estado democrático e de direito, mas é como se não existissem. E o próprio estado, por meio de seus vários entes (lembrem-se de que o Senado o integra; é parte do Poder Legislativo), é o primeiro a promover a desordem, a acochambração, a ilegalidade.

Estamos diante de um outro caso escandaloso. O aborto é ilegal no país (vontade expressa, note-se, pela maioria dos brasileiros também em pesquisas), com a exceções previstas, nos casos de estupro e risco de morte para a gestante. Não obstante, sem que a lei tenha mudado, o governo anuncia que vai facilitar, inclusive com distribuição gratuita, a chamada pílula do dia seguinte, uma bomba hormonal que, observem, só tem utilidade se a fecundação já tiver acontecido; vale dizer: ela é abortiva. Observem: nem estou entrando no mérito científico, moral ou religioso da escolha feita. Estou dizendo o óbvio: a distribuição é ilegal. O governo opta pela zona cinzenta, por atropelar a lei, por sobrepor uma prática contrária àquilo que está escrito. O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, tem todo o direito de lutar pela descriminação do aborto. Ele já expressou a sua opinião, diga-se. O país tem instituições. O que ele não pode é estimular uma prática contrária ao que foi pactuado.

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Caminhando para a conclusão
Esse caso do aborto é emblemático. Há, aí, várias opções. A primeira e óbvia é a escolha pela ilegalidade, pelo que chamo de esbulho institucional. É o mesmo que privar o país das regras de convivência que foram combinadas. Socorrem o ministro, no entanto, as pessoas e entidades para as quais, como é mesmo?, hierarquia e valores não fazem sentido, dada a importância do problema: afinal, Temporão estaria pensando no bem de milhares de mulheres. Ora, o que é uma ilegalidade quando o propósito é tão nobre? Desnecessário dizer, ademais, que a pílula do dia seguinte, como política pública, é o exato oposto de uma política de educação que supõe o sexo responsável. É evidente que a sua adoção faz o risco da gravidez parecer menor.

Vivemos dias um tanto infernais. Não se trata de uma convulsão revolucionária porque a revolução não cabe mais no mundo contemporâneo. Os valores foram seqüestrados pelos depredadores da ordem e da hierarquia. E eles têm, sim, à diferença do que se possa pensar, uma agenda. Renan Calheiros, por exemplo, é quem é: em muitos sentidos, nada é tão antigo no Brasil quanto ele; Renan é o Brasil reacionário. Mas não nos esqueçamos de que a força em que ele hoje se apóia é o PT, a quem interessa um Parlamento liquidado. As correntes políticas que poderiam representar a renovação dos, vá lá, valores conservadores estão aparvalhadas, inermes, incapazes de reagir a essas várias frentes de depredação da lei e da ordem.

Volto ao começo. Lamentarei sempre a morte de Bruno Tolentino. Pela nossa amizade, pela poesia, por um Brasil que chegou a saber o que era valor, hierarquia, Bem e Mal. A cada dia faz um pouco mais de escuro. Então encerro com o poema III-56 de A Imitação do Amanhecer:

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Se eu quisesse fazer que soluçassem as flautas,
bastaria pedir ao Orfeu sempre-vivo
que imitasse na lira o seu rosto festivo
e ininterrupto como o riso das cascatas.
Ou rogar à Artemisa que o trouxesse das matas,
dos bosques da inocência, aquele corpo altivo
e dócil que eu amei, meu pássaro cativo;
que o exibisse outra vez, nudez entre as incautas
matas virgens do sonho… Ah, mas as velhas lousas
na terra inteira iam chorar bem mais ainda,
mais do que as flautas todas, cuja música é linda,
mas vem da dissonância no coração das coisas,
as pobres coisas que soluçam quando pousam
a glória ao lado delas, a gloria do que finda…

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