Morreu Fidel. Vai ter Primavera de Havana? Partiu Cuba
Tenho a mesma idade da revolução cubana, porém nunca estive na mítica ilha, igualmente saudada como paraíso tropical socialista e execrada como indigna ditadura de terceiro mundo. No entanto, não conheço ninguém que tenha viajado à Cuba e não tenha voltado, no mínimo, entusiasmado. Realmente a ilha carrega um borogodó incrível e Fidel Castro, morto […]

Tenho a mesma idade da revolução cubana, porém nunca estive na mítica ilha, igualmente saudada como paraíso tropical socialista e execrada como indigna ditadura de terceiro mundo. No entanto, não conheço ninguém que tenha viajado à Cuba e não tenha voltado, no mínimo, entusiasmado. Realmente a ilha carrega um borogodó incrível e Fidel Castro, morto aos 90 anos, na última sexta-feira (a famigerada Black Friday de celebração do consumo capitalista, quanta ironia…), fez parte disso.
No mundo, neste fim de semana, não se falou de outra coisa. Com gente tão diferente quanto o Papa Francisco, o presidente russo Vladimir Putin e o ex-presidente americano Jimmy Carter, lamentando a morte do comandante en jefe e enviando condolências à família e ao povo cubano.
Minha geração cresceu embalada pela utopia socialista e Cuba era a maior prova de que o sonho era possível. Não restava dúvidas de que o coletivo devia se sobrepor ao individual para se atingir uma sociedade mais justa e igualitária. Sim, o pôster na parede e o rosto na camiseta era do camarada Che Guevara, mas era Fidel o revolucionário sobrevivente, mantendo o regime forte e sacudido, apesar das pressões internacionais e do embargo comercial ianque.
Ouvíamos embevecidos gente mais velha nos relatando que, além dos avanços nas políticas de saúde e educação para todos, o governo de Fidel havia posto fim a mazelas sociais como a prostituição e o homossexualismo (era o termo que se usava na época). Mais tarde, através de Reinaldo Arenas e outros dissidentes, descobriu-se que a coisa não era bem assim.
Uma cena: na sala de aula, na faculdade, logo depois das férias do meio do ano, rodavam as fotos de alguém que estivera em Cuba – verdadeira aventura proibida em dias de governo militar. Uma das imagens atraía a atenção de todos. Mostrava um grupo de garotos jogando bolas de gude e possuía curiosa semelhança com qualquer instantâneo capturado em uma rua brasileira. Aí vinha a pergunta que não queria calar: “Por que essa foto só poderia ter sido feita em Cuba e não aqui”. Cenhos franzidos, caras de dúvida, suspense e a resposta vinha com sabor de vitória: “Porque todas as crianças estão calçadas”. Havia alguns olhos marejados entre os presentes. Na trilha sonora, também trazida de Havana – ouvida somente em reuniões para poucos no Centro Acadêmico, porque eram tempos sombrios – um grupo cantava que “a cordilheira dos Andes um dia ainda será uma imensa Sierra Maestra”.
Por essas e outras, para o bem e para o mal, a Cuba de Fidel está entranhada em nós, latino-americanos que estivemos na face da Terra nos últimos quase 60 anos. E como bem lembrou um amigo, hoje em um post em rede social: “Neste ano de 2016, o século XX deu o último suspiro”. Já havia pensando nisso quando há alguns meses Chanel e os Rolling Stones deram um rasante em Havana.
Agora ouvimos os prognósticos para a Cuba pós-Fidel. Liberdade, democracia e capitalismo? Ou opressão e colonialismo ianque, começando com Donald Trump?
Acredito, e espero, que o povo cubano tenha sua própria agenda. Mas se houver uma Primavera em Havana, gostaria de ver de perto. Posso ter nascido no século passado, mas não sou de época.