A epidemia de infantilização voluntária
De onde vem a obsessão atual com bebês reborn, avatares mirins e outras maneiras de fugir da vida adulta?

De um lado, o bebê reborn. De outro, pessoas criando versões mirins de si mesmas com poucos meses de idade. É impressão minha ou estamos mais obcecados com a primeira infância do que nunca?
Comecei a pensar nisso diante da trend do aplicativo Dreamina, em que muita gente usa fotos atuais para gerar nenéns — os de IA, calma — falando coisas engraçadas, cantando, se movendo. Tem versões feitas com outras ferramentas também, como o ChatGPT, usado para a imagem que ilustra este texto.
Das bonecas hiperrealistas que custam milhares de reais até filtros que nos transformam em versões “fofas” de nós mesmos, parece que existir na internet hoje passa necessariamente por querer voltar para dentro da barriga da mamãe, como cantava Rita Lee. Aliás, de tempos em tempos surgem vídeos com versões bebê do pessoal de Friends e de Sex and The City.
Por falar nisso, continuo com outra referência pop, perdão, evocando a frase da Carrie Bradshaw: “I couldn’t help but wonder…”. Ou seja, “eu não tive como não me perguntar” se tem algo capaz de explicar essa espécie de epidemia de infantilização voluntária.
Sei que muita gente vai dizer coisas como “cara, é apenas uma trend” ou “pelamordedeus, não tem que achar significado em tudo”. E, acredite, eu SEMPRE sou a pessoa que reage assim. Mas, desta vez, penso que essa moda digital revele algo mais profundo sobre nossa sociedade.
Do modesto currículo de psicologia que tive na graduação de jornalismo, lembro da ideia de criança interior, de Carl Jung. Aliás, o mesmo que propôs o conceito de inconsciente coletivo. Uma possível resposta para o sucesso das baby trends pode vir daí.

A criança interior que Jung descreveu está emergindo em massa. Mas por quê? Por causa do que a infância geralmente representa: segurança absoluta. E isso tem ocorrido como uma resposta ao contexto de ser adultos no século XXI: se nossos pais lidavam com um leão por dia (odeio essa fraseee), a gente leva várias tsunamis de incerteza a cada meia hora.
Entrevistei a futurista Martha Gabriel essa semana, e ela falou que todas as gerações estão com medo do que vem por aí. Scrollar pelas redes só aumenta a tensão: instabilidade econômica, polarização política, mudanças climáticas, incerteza profissional, sobrecarga informacional.
Como reação a isso, é compreensível buscar a última vez em que o mundo pareceu menos desesperador. Sim, quando éramos baixinhos da Xuxa, bichinhos da Parmalat ou víamos a novela Carrossel, versão Maísa Silva— escolha conforme sua geração.
Infância, sobretudo nos tenros anos de bebê, é sinônimo de que nossas necessidades básicas estão garantidas (ou, pelo menos, deveriam). Neles, o mundo era dividido entre “bom” e “mau” de forma clara e não precisávamos tomar decisões complexas. Até o futuro era responsabilidade de outros.
Você talvez já tenha ouvido falar de um autor (maravilhoso) chamado Zygmunt Bauman, que praticamente definiu a contemporaneidade num livro chamado Modernidade Líquida. Ali, dentre outros pontos de vista, ele fala que a fluidez constante da vida moderna criaria uma busca desesperada por âncoras de estabilidade. E olha aí a trend do bebê! Olha aí o bebê reborn!
Enquanto pesquisava para este texto, achei muito curioso saber que esse padrão se repete de tempos em tempos. Ver que a humanidade sempre recorre à infância simbólica em tempos difíceis.

Durante a Grande Depressão dos anos 1930, houve um boom de desenhos animados e entretenimento infantil, encabeçado pelo Mickey Mouse. Após as duas guerras mundiais, a idealização da infância e da família nuclear atingiu níveis históricos.
E, se você viveu os anos 2000 como eu, deve lembrar que o pós-11 de setembro teve um boom de filmes infantis para adultos, brinquedos colecionáveis e valorização crescente da nostalgia. A diferença é que agora temos as redes sociais, que amplificam e democratizam essa regressão.
Claro, tem outros fatores que explicam essas modinhas dos dias de hoje. A adesão de gente famosa, como quase tudo nos dias de hoje, certamente ajuda a espalhar mais. Entre as celebridades que aderiram à trend do bebê estão as duplas Thaeme e Thiago e Maiara e Maraísa.
Não dá para desconsiderar também que as pessoas legitimamente se derretam com os vídeos de nenéns fofinhos. Não só somos programados biologicamente para adorar bebezinhos, como o elemento surpresa provocado pelos vídeos e fotos dessa trend costuma render engajamento, nem que seja de quem acha horríveis os bebês falantes.
Acontece o mesmo com os bebês reborn: qualquer conteúdo a respeito — seja dos que amam, seja dos que odeiam — é como uma mina de ouro para os algoritmos, que espalham depressa tudo o que desperta nossas emoções mais intensas. Falei a respeito disso no meu podcast, o Aprenda, outro dia. Deixo aqui o convite para você ouvir.
Não há algo necessariamente nocivo nessa obsessão 2025 pela primeira infância. Desde que a brincadeira com nossos “eus” mirins de ontem não paralise os “eus” idosos de daqui a não muitos anos.
Ou seja, tudo bem visitar o passado, desde que isso não crie problemas para o mundo que a gente tem que construir para o futuro. Vai lá ser criança por alguns minutos, receber validação digital, tudo certo. Mas não esqueça de voltar às responsabilidades adultas. É uma forma de autocuidado disfarçada de trend.