Roberto Menescal: a vida produtiva do último guardião da bossa nova
Aos 85 anos, o compositor lança biografia, documentário e faz parcerias com jovens cantoras
O cantor que transformou o mar e seus personagens em fonte de inspiração, Dorival Caymmi, não se arriscava nas ondas — pois não sabia nadar. Outra das ironias na história da música brasileira é que um dos compositores consagrados por louvar as belezas do Rio de Janeiro é, quem diria, um capixaba: Roberto Menescal. A bem da verdade, ele está mais para carioca “naturalizado”, pois se mudou para a cidade com a família na infância. Dono de um olhar singelo, transformou o simples deslizar de um barquinho na Baía de Guanabara em clássico eterno. Hoje, aos 85 anos, é um dos últimos remanescentes vivos daquele grupo de geniais artistas que, no fim dos anos 1950, criaram a bossa nova no apartamento de Nara Leão, em Copacabana, dividindo saraus com feras como João Gilberto e Tom Jobim. Longe de se aposentar, Menescal carrega com brio o legado do gênero e, nos últimos anos, abraçou a missão de apresentá-lo às novas gerações.
Essa tal de bossa nova: Edição revista e ampliada
Na tarefa incansável de tirar esse ritmo do armário de velharias, Menescal se desdobra em várias frentes. Só neste ano, compôs bossa para crianças (a faixa Vovô Vovó), e gravou com novas cantoras brasileiras e estrangeiras, como a baiana Analu Sampaio, de 14 anos, e a sul-coreana Heena. É tema da biografia Essa Tal de Bossa Nova e do documentário Dia de Luz, Festa de Sol (ainda em produção). Do Barquinho, sua composição mais famosa, foi ao Bondinho, criada recentemente por ele sob encomenda para homenagear os 110 anos da atração. “Apesar de seus problemas, o Rio sempre foi minha inspiração”, afirma.
Não bastasse seu papel fundamental na bossa nova, Menescal também tem direito a um capítulo especial na história por ter sido produtor musical de uma lista eclética de talentos, que vai de Elis Regina a Sidney Magal. Assim, ao longo dos anos, o compositor se transformou em peça fundamental para a consolidação da MPB, da criação da tropicália ao rock nacional. Parte dessa história é contada na biografia escrita por Bruna Ramos Fontes, cuja edição atualizada saiu pouco tempo atrás, relatando o período em que ele foi o diretor da Polygram, entre 1970 e 1986. Na época, chegou a produzir cerca de setenta álbuns por ano e colecionou histórias impagáveis dos bastidores da produção de obras de estrelas. Além de Elis, trabalhou com Raul Seixas, Gal Costa, Tim Maia, Chico Buarque e Nara Leão. Naquela fase, o mais difícil foi lidar com a censura da ditadura militar. Para contornar a proibição de gravar Chico Buarque, ele e o cantor bolaram uma estratégia simples: usar um pseudônimo. “Assim surgiu o ‘compositor’ Julinho da Adelaide, que assina Acorda Amor no disco Sinal Fechado”, recorda-se Menescal.
Da bossa nova à tropicália (Descobrindo o Brasil)
Quando o assunto é bossa nova é que ele se sente mais à vontade. Menescal é um de seus protagonistas obrigatórios — participou, por exemplo, do antológico show que lançou o movimento no exterior, realizado em 1962 no Carnegie Hall, em Nova York, e que acaba de completar sessenta anos. Ele se defende das velhas críticas de que suas letras só falam sobre amenidades etéreas, como beijinhos e peixinhos em águas amenas. “Antes, havia o samba-canção, com letras barra-pesada, do tipo ‘Se eu morrer amanhã, não farei falta a ninguém’. Imagine, tínhamos 18 anos e só queríamos cantar as belezas da vida, não aquela tristeza”, justifica.
O compositor celebra a longevidade do ritmo e ironiza quem diz que ele virou música de elevador no exterior. Como exemplo de sua vitalidade atemporal, cita a cantora Billie Eilish, de 20 anos, que lançou recentemente Billie Bossa Nova. Com a experiência de quem trabalhou com música a vida inteira, Menescal prevê uma nova revolução no mercado em breve, baseado numa curiosa comparação. “Quando a gripe espanhola foi superada, veio a Semana de Arte Moderna de 1922. Agora, depois da Covid, viveremos outro momento de bonança”, diz. No que depender de Menescal, independentemente do que vier pela frente, haverá sempre um barquinho a deslizar no macio azul do mar.
Publicado em VEJA de 7 de dezembro de 2022, edição nº 2818
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