Perfume Genius detalha seu rock gay e irreverente em entrevista a VEJA
Cantor fará show no C6 Fest no sábado, 22, e se inspira em David Lynch, Björk e mais para tecer música alternativa tão vulnerável quanto enigmática

Neste sábado, 24, um dos nomes mais irreverentes do rock alternativo global se apresentará no C6 Fest, em São Paulo, para uma base de fãs tão nichada quanto fervorosa e fiel. Aos 43 anos, Perfume Genius (alcunha do americano Mike Hadreas) volta ao país após 12 anos de hiato, período no qual lançou os principais sucessos de sua carreira e experimentou com as mais diversas sonoridades e fantasias fabulosas — do glam rock andrógino com o qual enfrentou convenções e homofobia em Too Bright até a aparência suja, machucada e viril de Set My Heart on Fire Immediately, no qual sons metálicos e a crueza emocional atraíram milhares de novos admiradores. Agora, ele promove o disco Glory, de 2025 — uma espécie de continuação temática do que já fez, ainda marcada pelo frescor de ponderações verbais e instrumentais ora suaves, ora brutais. Fazendo de suas tripas coração, Hadreas revela suas vulnerabilidades com alegorias que vão de sequestro relâmpago ao canibalismo. Em entrevista a VEJA, ele detalha o processo que o levou a tais composições, a relação com o público brasileiro e as influências de sua identidade gay nas notas que tece:
É comum te ver interagindo com fãs brasileiros nas redes sociais. Quais são as expectativas para o seu segundo show por aqui? Faz tanto tempo desde a última vez que fomos ao Brasil. Eu lancei vários álbuns nesse meio tempo, o que me parece insano. Acredite, não foi por falta de tentativa. Queremos ir com todo novo lançamento, então estou animado para tocar essas músicas todas que acho que as pessoas querem ouvir de cada álbum. Eu odeio ir a shows e não ouvir aquela favorita que estava esperando. Estou pesquisando, talvez faça uma enquete. Quero cantar o que as pessoas querem ouvir. Sinto o amor brasileiro o tempo todo, mesmo sem estar aí.
Glory e Set My Heart on Fire Immediately brincam com estereótipos de masculinidade, enquanto um álbum como Too Bright evoca a androginia do glam rock e No Shape questiona a própria necessidade de um corpo. O quão importante é a expressão de gênero no seu processo de criação? É algo contínuo. Acredito que, quando se é mais jovem, se pensa que é preciso encontrar algo concreto e permanente. Tenho certeza de que isso é verdade para algumas pessoas, mas não sei se já encontrei esse firmamento. Quanto mais envelheço, menos me importo e menos tento ter tudo definido. Talvez nunca chegue nesse lugar, talvez só queria fazer o que quero fazer. Ao mesmo tempo, sinto a responsabilidade de compartilhar tudo isso desde meu primeiro disco, quando sabia que as pessoas ouviriam o material. É também por isso que eu escuto música: para encontrar um espelho para meus sentimentos, para coisas que sei e não sei, para o que não posso articular, tampouco explicar. Isso foi fonte de conforto quando era mais novo e morava em uma cidadezinha pequena, sem conseguir ter espelhamento algum na vida real. Músicas eram os pensamentos secretos em minha mente — ou os que não eram secretos, mas odiados pelas pessoas. Eu sabia que, pela música, havia um lugar para ir e existiam pessoas que eu poderia conhecer que me entenderiam.
O que o faz ter sons, visuais e identidades tão bem demarcadas para cada disco? É bem orgânico. Tento pensar em nada antes de começar um novo ciclo, porque estou costumeiramente equivocado e também porque não gosto de coisas resolvidas. Prefiro a bagunça, a novidade e o risco. Não gosto de me repetir. Essa é minha maior preocupação no processo de escrita: evitar falar o que já falei. Posso até me inspirar no passado, mas não quero que ele seja o ponto de partida. Sinto que, especialmente quando uma pessoa sente que não faz sentido com seus arredores, os arquétipos se tornam muito divertidos, porque são muito consolidados, firmes. Especialmente quando são empréstimos temporários, apenas algo que está sendo provado. Existe prazer em se vestir de algo que carrega muita informação e o macular. Eu sei que não sou inteiramente aquilo. É óbvio que não sou uma figura hiper masculina. Gosto dessa linha subliminar alienígena.
Tendo escrito obras para dança contemporânea como Ugly Season e The Sun Still Burns Here, você pensa em como apresentará uma música enquanto a escreve? Escrever é muito físico, é como procurar por um sentimento em meu corpo. Só quando o encontro, sinto que aquilo é importante, então tento construí-lo e capturá-lo. Eu rolo no chão enquanto escrevo, gosto de ter as luzes apagadas ou de acendê-las na intensidade máxima. Estou sempre em busca de uma atmosfera energética — e dançar me deu mais ferramentas para tal. Ao longo dos anos, aprendi a ir além do recinto que eu ocupava e a me comunicar com o ar ao meu redor. Desenvolvo meu relacionamento com um sofá ou com um tecido de tule. Também sou mais destemido na hora de fazer o que nunca fiz. É estranho experimentar na frente de uma plateia que pagou para estar ali. Se eu vou fazer algo pervertido em uma cadeira, tenho que garantir que será bom.
O clipe de No Front Teeth sobrepõe imagens absurdas, com um quê de humor lynchiano, a uma canção muito sensível. Por que esse contraste se tornou uma assinatura sua? As partes não são tão dessemelhantes. Eu, por exemplo, gosto de assistir a filmes que são discutidos como “os mais perturbadores da história”. Um dia, posso sentar para vê-los e ficar horrorizado. Em outro — especialmente se estou com um amigo —, posso rir o tempo todo pelos exageros. A obra é a mesma. Sempre me senti assim, estou um dia paralisado pela ansiedade e, 24 horas depois, não me importo mais. É aconchegante para mim quando esses elementos coexistem. Além disso, me parece algo mais gay. David Lynch pode ser muito heterossexual por um lado, mas seus filmes são muito gays para mim, no sentido de que tudo acontece ao mesmo tempo. Não são exatamente sérios, nem exatamente bobos.
Para além de Lynch, que inspirações artísticas o fizeram centrar a experiência LGBT+ em sua produção? Crescendo, era por isso que eu procurava em tudo. Eu tinha um blog para a Björk quando era mais jovem, era obcecado. Também amava a Tori Amos. Talvez quando for muito velho saberei por que fiz o que fiz, mas ainda não compreendo tudo que me trouxe aqui. Mesmo assim, gosto de estar neste lugar e sinto um certo dever, mesmo que não saiba exatamente o que ele é.
Suas letras são íntimas, mas poéticas, econômicas e crípticas. Como as encontra? Tenho uma matemática esquisita para como as letras devem aparentar na folha quando as escrevo. Às vezes elas não se alinham, mas estou orgulhoso desse álbum. Quando as vejo, elas têm o visual que eu queria. É um processo estranho. Nunca quero que as coisas sejam óbvias demais. Não quero contar exatamente o que se passa, quero mostrar ou evocar as revelações nas entrelinhas. Com Glory, queria articular o próprio sentimento de confusão, mas também idealizei as letras como muito particulares, quase confessionais — ainda que sejam enigmáticas para quem as lê. Organizo planilhas, listo páginas da Wikipedia, coleciono fotos e ideias e as jogo por toda parte. De algum jeito, encontro uma música no fim dessa equação.
Após escrever um disco sobre confusão e incertezas, se sente diferente quando o canta em cima de um palco? Ainda sinto que tudo está perto de mim, não me livrei dessas aflições. É estranho compartilhar algo enquanto se está no processo de expurgá-lo — e é mais vulnerável. Era algo que me preocupava nos ensaios. Algumas faixas me embargavam a garganta e eu pensava “como vou fazer isso no palco”? O que acontece é que o show é para os outros. Compartilhar a dor a dilui. Fica mais fácil se expor, ao mesmo tempo em que a experiência é assustadora. Minha mente vai e vem ao longo de uma apresentação, vou da autoconsciência à desinibição.