“O samba está retomando sua importância”, diz Marquinhos de Oswaldo Cruz
Sambista carioca de 63 anos lança primeiro disco por grande gravadora sem se curvar às pressões do mercado

Há 20 anos, o sambista Marquinhos de Oswaldo Cruz, de 63 anos, ouviu de um outro músico que se “raiz fosse boa, não ficava embaixo da terra”. Na ocasião, o pagode romântico grassava nas rádios e elevava ao status de estrelas nacionais seus intérpretes e compositores. Nascido em Madureira e criado em Oswaldo Cruz, Marquinhos não queria tocar aquele pagode, de letras melosas e harmonias simples, embora altamente popular. Seu negócio era mesmo o samba de raiz. Se por um lado a opção o impediu de alçar o estrelato, por outro lado, ele jamais deixou se levar pelo popularesco.
Duas décadas se passaram e o sambista lança agora seu sexto álbum autoral – e o primeiro por uma grande gravadora – Agbo Ato (Deck), que é uma expressão em iorubá que significa “que tudo dê certo”. O repertório, claro, conta a fina flor do samba carioca – sim, aquele de raiz. Os temas das músicas passam pelo respeito as suas ancestralidades africanas, faz reverências aos grandes sambistas, especialmente aos da Portela, mas conta com pelo menos uma canção gravada para lavar a alma. A faixa Verde Bandeira composta há mais de 20 anos em parceria com o craque Luiz Carlos Máximo, é uma resposta àquela declaração de raiz-ficar-embaixo-da-terra: “Pode tentar me podar/ pode tentar derrubar/fortalecido eu vou nascer de novo”, diz a letra.
Agitador cultura, Marquinhos se inspirou em Paulo da Portela para recriar há 30 anos o Trem do Samba, hoje um dos eventos culturais mais tradicionais do Rio, em que sambistas recriam o trajeto de trem de Paulo até Oswaldo Cruz celebrando o ritmo musical. O cantor também é criador da Feira das Yabás, que acontece em Madureira, onde se celebra a valorização da ancestralidade, a música afrobrasileira, com palestras sobre empreendedorismo dos músicos e da força das mulheres na gastronomia.
Em entrevista a VEJA, Marquinhos de Oswaldo Cruz comentou sobre o novo álbum e a importância da defesa do samba. Confira abaixo:

Aos 63 anos, o senhor lança seu primeiro álbum de samba de raiz por uma grande gravadora, após ouvir há 20 anos que se raiz fosse boa, não ficava embaixo da terra. Qual é o seu sentimento? Na minha época, o Cacique de Ramos enfrentava um período de baixa. Zeca Pagodinho, Martinho da Vila, Pérola Negra já haviam sido lançados. Cheguei depois. O que era rentável naquele momento era o pagode romântico. Mas eu aprendi o sr. Manacé, autor de Quantas Lágrimas, que fazer samba é fazer o que você está sentindo, sem se importar com o que está sendo gravado. Porque, no fundo, o samba é uma forma de conexão com sua ancestralidade. Naquela época, o real e o dólar tinha paridade de 1 para 1 e tinha muito artista de pagode que ganhava 150.000 reais por uma faixa. Era a independência financeira para qualquer um. Não faço juízo de valor de quem fez isso. Eu nunca fiz.
O samba tradicional está ganhando força novamente? Agora, mais do que nunca, o samba está retomando sua importância. O Rio de Janeiro está cheio de rodas de samba. Me lembro que, em determinada época, um amigo da velha guarda me disse que esse samba tradicinal que eu defendia não voltava mais não. Muitos diziam que eu fazia samba de velho.
O que significou para você gravar o álbum Agbo Ato? Com dizia Candeia: “A arte é livre e aberta, a imagem do ser criador”. Há uma herança africana muito grande no samba do Rio de Janeiro. É uma coisa muito ligada à ancestralidade. Fiz uma viagem para o interior Nigéria no ano passado e a primeira coisa que aprendi com eles é que não existe “a verdade” e, sim, “as verdades”. Quando somos jovens, sempre achamos que sabemos o que é a verdade. Eu tinha uma certa resistência em compor usando expressões em iorubá, mas vejo que o samba vem de todos os cantos. Há por lá um respeito muito grande pelos mais velhos. E assim também é no samba. Se o mais velho está cantando, você fica ali do lado, aprendendo. É uma escola informal.
Essa defesa das religiões de matriz africana também é importante para combater o preconceito? Claro. O importante é valorizar e fazer uma defesa dessas religiões. Nas redes sociais a coisa é macabra. A Anitta, por exemplo, quando ela assume sua religião, ela perde seguidores nas redes sociais. Eu quase fui padre na juventude, em uma opção ligada à Teologia da Libertação. Mas a associação do samba com as casas de santos vem da minha infância. Carlos Cachaça sempre disse que samba era música de santo que a gente botava outra letra. Isso era o samba para ele.
Como manter um projeto cultural como o Trem do Samba por tanto tempo? Quando eu criei o Trem do Samba foi porque eu tinha o receio que algumas estações da cidade que ajudaram a dar forma ao samba sumissem. Vários bairros surgiram ao redor dessas estações. Eu trabalhava numa loja de mateiral de construção com o meu pai. O Manacé era um dos clientes e eu ficava imaginando como nossos bairros eram ricos culturalmente. Músicas incríveis foram compostas lá. São muitas riquezas. Aí, eu resolvi refazer a viagem que o Paulo da Portela fazia no início do século passado para fugir da repressão policial. Eu não imaginava que iria crescer tanto. Hoje ele leva cerca de 100.000 pessoas para a periferia para cantar samba de raiz.