O efeito devastador do escândalo do astro P. Diddy no mundo do hip-hop
Como a prisão de Sean Combs, acusado de abusos sexuais em série, está abalando a indústria — antes um bastião de ídolos intocáveis
Poderoso, influente e dono de uma fortuna de quase 1 bilhão de dólares, o rapper Sean John Combs — conhecido como P. Diddy ou Puff Daddy — foi por décadas um figurão intocável na elite do hip-hop. Há um mês, porém, seu barraco desabou: o artista de 54 anos foi preso sob a acusação de encabeçar um escabroso esquema de tráfico sexual, extorsão, associação criminosa e promoção da prostituição. Combs está detido em uma prisão de Nova York célebre por sua insalubridade — e o contraste entre sua situação atual e os dias de glória ilustra o tamanho do peixão que caiu nas mãos da Justiça americana. A cerca de 160 quilômetros de sua cela fica o endinheirado balneário dos Hamptons, onde Combs promoveu nos últimos anos as concorridas Festas do Branco, que contavam com mulheres seminuas na piscina e eram frequentadas por estrelas do porte de Leonardo DiCaprio, Demi Moore, Jay-Z, Beyoncé, Ashton Kutcher, Mariah Carey e Jennifer Lopez — aliás, sua ex.
O que a polícia averiguou, de alguns meses para cá, é que havia algo podre por trás da badalação. Em paralelo, Combs também promovia baladas privês chamadas de freak offs (“surtos”, em português), nas quais coagia mulheres a se drogarem para transar com garotos de programa, enquanto ele próprio assistia a tudo. Nas suas mansões em Los Angeles e Miami, a polícia encontrou drogas, fuzis e mais de 1 000 frascos de óleo para pele de bebê e lubrificantes — produtos que, em tese, seriam destinados a essas orgias. A principal denúncia foi feita por uma ex-namorada do artista, a cantora Cassie Ventura, que alega ter sido estuprada repetidamente por Combs e obrigada a se drogar e também a transar, por dias, com outros homens enquanto ele a espancava. A prisão causou um efeito dominó, com novas denúncias de outras sete mulheres e de dois homens.
Embora degradantes, as freak offs não eram segredo. Muita gente sabia, mas não denunciava com medo de represálias. Dono de marcas de bebidas e de roupas, e com investimentos que vão da Cannabis a imóveis, além da gravadora Bad Boy Records, Combs era visto como um pop star irrefreável num meio em que maiorais com um quê de gângsteres musicais pontificam. Sempre houve uma cultura de abuso no meio hip-hop, mas sua existência era um anátema indigesto frente à simbologia de afirmação social e racial representada pelo sucesso de seus ídolos. Tornou-se impossível esconder esse mal-estar quando outro medalhão, R. Kelly, foi condenado por crimes semelhantes, há três anos. Desde então, as vítimas se encorajaram a denunciar os desmandos, e os casos agora se empilham. Grandes produtores como L.A. Reid, The-Dream e o magnata Irv Gotti também respondem por abuso sexual e estupro.
Nada é equiparável, contudo, à magnitude e ao potencial de estrago do escândalo de Combs — que ameaça atingir outros grandes na música. O efeito colateral mais notório até o momento foi sentido por Beyoncé. Na última semana, a musa do r&b perdeu quase 1 milhão de seguidores no Instagram devido à amizade do agora tóxico Combs com seu marido, Jay-Z.
Ainda que a Justiça americana não tenha revelado mais indícios concretos sobre os crimes, o tribunal da internet já tornou o músico radioativo. Inúmeras teorias conspiratórias e memes brotaram nos últimos dias, envolvendo os famosos que compareceram às suas festas. Até as velhas especulações sobre seu suposto envolvimento no assassinato do rival Tupac Shakur, em 1996, voltaram à tona. Diddy e seu amigo Notorious B.I.G. alimentavam uma rixa com Shakur e, quando ele morreu, as suspeitas logo recaíram sobre ambos — B.I.G. também foi assassinado, no ano seguinte. Duane Davis, preso recentemente pelo crime, disse à polícia que o empresário de Combs lhe ofereceu 1 milhão de dólares para matar o ídolo. Após a prisão de Combs, a família de Shakur anunciou que pedirá a reabertura do caso.
Os antigos desafetos do astro caído agora posam de oráculos da verdade, como de praxe nesses casos. Eminem, que chegou a chamá-lo de estuprador em uma música, diz que sempre avisou quem ele era e não foi ouvido. Já o rapper 50 Cent anunciou que produzirá um documentário sobre o escândalo, em parceria com a Netflix. Por fim, o advogado da nova leva de vítimas que vão processá-lo prometeu revelar em breve uma lista de cúmplices poderosos e “surpreendentes”. Pelo jeito, suas ligações perigosas vão abalar o hip-hop por muito tempo.
Publicado em VEJA de 11 de outubro de 2024, edição nº 2914