Gaby Amarantos lança álbum para “curar síndrome de vira-lata”
Artista belenense mostra todo o vanguardismo da música do norte do Brasil e fala a VEJA sobre polêmica da COP 30

Com a COP 30 colocando a cidade de Belém sob atenção nacional e internacional, a artista belenense Gaby Amarantos propõe algo parecido com seu novo disco Rock Doido, um álbum e filme de 21 minutos gravado a partir da vivência na periferia da capital paraense. Em um cenário composto por festas de aparelhagem, sincretismo religioso, carretas e drag queens, o curta-metragem propõe uma imersão na cultura nortista, que, como lembra Gaby, é vanguarda e inspiração para diversas tendências musicais atuais. “Hoje a gente tem pirotecnias nos shows e músicas curtinhas tocadas nas redes sociais, mas as aparelhagens já faziam isso 20 anos atrás”, disse a cantora a VEJA. Se essas referências sempre estiveram em Belém, o Brasil demorou para endereçar à cidade tal originalidade. “Quando a gente falou de tecnobrega 13 anos atrás com o meu primeiro disco Treme, ainda era uma coisa muito estranha para o país”, explicou Gaby.
Agora, o brega não só está mais difundido no país como existe mais estrutura para que um projeto como Rock Doido se consolide e seja feito por diversas mãos. Repleto de colaborações desde a sua concepção — que envolveu a comunidade local nas gravações do curta e companhias artísticas paraenses, totalizando 250 pessoas — Rock Doido traz nomes como Viviane Batidão na canção Te Amo, Fudido, a sertaneja Lauana Prado na emocionante Não Vou Chorar, Gang do Eletro no tecnobrega de Tumbalatum e MC Dourado em Cerveja Voadora.
Na entrevista, Gaby Amarantos responde sobre suas ambições com o projeto, descrito por ela como a “obra que gostaria de deixar de legado cultural”, além de comentar sobre a polêmica envolvendo preços abusivos de hotéis em Belém para a COP 30 e a disputa entre Belém e Recife para o título de Capital Nacional do Brega. Confira:
Qual Brasil você quer mostrar com esse projeto? O Brasil periférico da Amazônia, o Brasil potente, criativo, que sempre inovou, sempre criou tendência e que agora merece todo o reconhecimento através não só do Rock Doido, que é uma manifestação cultural de todas as nossas potências, mas através de todas essas vivências que a gente vai ter na nossa região, desses olhos voltados para a Amazônia. A gente é o portal, é a capital dessa floresta e na capa desse projeto tem dois grandes olhos, que são os olhos que tudo veem, mas que veem a partir do nosso ponto de vista. Os olhos do mundo virados para a nossa cena. Em um país em que muitas pessoas são xenofóbicas conosco, achando que a gente não tem condições de sediar uma COP 30 ou que nos excluem de tantos movimentos culturais, mostrar o Rock Doido, o álbum, esse projeto que tem um plano sequência de 21 minutos de muita criatividade, que foi feito de um lugar de muita inovação e revolução, é uma forma da gente curar a nossa síndrome de vira-lata e de entender somos muito potentes, que o Norte é esse epicentro do Brasil e que a gente precisa se olhar no espelho e fazer com que essa região faça parte. O grande mote da nossa arte é esse, é entender as dificuldades, as potencialidades, toda a problemática que a gente vive. Não é só tomar o tacacá, é entender de onde vem esse tucupi, o jambu, que ingredientes são esses? O que é essa festa de aparelhagem? Que movimento é esse? Então, o Brasil está pronto, o Brasil está preparado para entender, receber, consumir e ser Rock Doido.
Recentemente, se iniciou uma discussão sobre os preços abusivos dos hotéis em Belém para a COP 30 e algumas cantoras, como a Fafá de Belém, comentaram sobre um possível preconceito com a região norte do Brasil. Qual seu posicionamento sobre essa questão? Se a gente vai falar da Amazônia, a gente precisa estar na Amazônia. Nós temos sofrido muito com esses julgamentos e sabemos que isso tudo parte de um lugar de não querer descentralizar. É por isso que é tão potente e importante lançar uma premiére em Belém, lançar esse álbum aqui. Eu poderia fazer esse lançamento em São Paulo, eu poderia fazer no Rio, que são lugares que me acolhem, que eu amo e que eu vivo. Mas descentralizar é preciso. Temos que parar com essa visão “sudestecêntrica” de tudo e entender que, para compreender essa floresta, a gente tem que fazer parte dela. Chega de ver a Amazônia como um lugar distante. E sobre os hotéis, eu quando eu fui para o show da Lady Gaga, no Rio, as hospedagens estavam custando 12 000 reais. As pessoas falam como se fosse uma prática somente nossa. Essa é uma prática que faz parte, não cabe a mim entrar tanto nessa questão, mas sim, por que a gente apedreja tanto a descentralização das potências? Por que sempre tem que ser tudo num lugar? Essa é a grande questão. A COP é do Brasil. Quando eu vejo grandes eventos acontecendo no Nordeste ou no próprio Sudeste, eu torço pelo meu país. Então, por que o restante do país não pode torcer por nós também?
Você teve um momento decisivo sobre esse projeto quando você estava na Florentina, uma casa de shows em Belém. O que te fez perceber que ali tinha um novo projeto em potencial? Na verdade, tenho o desejo de fazer um projeto como esse desde 2012. Já tem quase 13 anos desde que eu lancei o meu primeiro álbum, o Treme, logo no próximo passo eu queria fazer algo como o Rock Doido. Só que lá atrás a gente não tinha a tecnologia que nos permitisse fazer isso de uma forma mais acessível. O filme é todo gravado pelo celular, pela Altar Sonoro, que é uma produtora daqui do norte, mostrando a força do nosso audiovisual. As companhias de dança que participam ainda nem existiam nessa época. Então precisou de toda uma maturação da nossa cena, da gente também se profissionalizar e poder produzir esse filme. A Florentina fica no bairro do Jurunas, nas periferias de Belém, o bairro em que eu nasci, que é como se fosse uma Cidade de Deus ou uma Paraisópolis, aquele lugar de onde saem muitas potências, mas que tem também as suas problemáticas. Quando eu levei a minha equipe para fazer uma imersão, eu senti que ali era a hora. Eu estava pronta e o Brasil estava pronto para receber também, porque quando a gente falou de tecnobrega 13 anos atrás com o Treme, ainda era uma coisa muito estranha para o país. Mas várias coisas aconteceram desde então: a Pabllo Vittar lançou Batidão Tropical, a gente teve artistas internacionais fazendo remixes, o mercado ficou pronto para entender. Hoje em dia as pessoas já sabem o que é, elas já ouviram falar em aparelhagem, então fica muito mais fácil para o Rock Doido se tornar essa realidade e essa força que ele é para o Brasil. O Brasil compreender e consumir o Rock Doido é o Brasil sendo cada vez mais Brasil.
Por que diria que o filme se tornou uma parte importante do processo criativo? Porque ele reflete a força criativa do coletivo de um lugar onde as pessoas não imaginariam que sairia uma coisa tão inovadora, tão vanguardista, tão antropofágica, tão mitológica. O lugar onde a gente gravou é um epicentro cultural, é um lugar boêmio, tem vários bares, casas de shows, mas tem também uma comunidade. E aí tem ali uma igreja católica, outra igreja evangélica, um terreiro de tambor de mina. Todas as frentes convivendo em harmonia no meio de uma grande encruzilhada. Quando a gente decidiu fazer nesse lugar, a gente não conseguia nem explicar para as pessoas o que iríamos fazer. Era só assim: “A gente pode gravar uma cena aqui nessa nessa vila? Podemos gravar aqui no seu bairro?”. No final, a comunidade pegou a sua melhor roupa e veio participar da figuração porque eles queriam estar juntos daquele documento audiovisual que estava sendo criado. Foi uma potência de muitas pessoas trabalhando, a gente só queria realizar. A gente só queria se divertir.
Há também uma polêmica em torno de qual é a capital do Brega, e esse ano o Lula colocou o dia do aniversário de Reginaldo Rossi como o Dia Nacional do Brega e isso motivou ainda mais a discussão. Qual é a sua opinião sobre esse tema? Eu nem entrei nessa discussão porque eu acho que não tem como entender só um desses lugares como capital. Para mim, Recife e Belém se retroalimentam, são irmãs separadas na maternidade. Reginaldo [Rossi] é um dos meus grandes ídolos na música, alguém que eu tive a oportunidade de conhecer. Mas Belém tem as suas potências, as suas particularidades e tem isso de ter sido o lugar onde começou essa cena historicamente, de ter estúdios onde os artistas de Recife vinham gravar. Então, eu vejo uma grande ponte imaginária luminosa entre esses dois lugares. Para mim são dois lugares que tem que ter esse título de capital, porque eles só se fortalecem. E eu fiquei muito feliz com as movimentações, com os questionamentos todos, mas eu falei muito para as pessoas que são cidades irmãs, que a gente tem é que se abraçar, porque o brega é uma força, uma potência criativa do Brasil. O sertanejo é brega, o trap também é brega, o samba é brega, porque o brega é falar de amor. É coragem de ser diferente, é força autêntica de usar figurinos inovadores, é soltar o laser do peito, questionar. É ter acima de tudo a coragem de ser do jeito que se é. Então o Brasil é brega, porque o brega é autoestima. Então para mim é agregar, é estar junto, é fortalecer, porque aí a gente fortalece essa cena no mundo, não só no Brasil. E eu acho que o Rock Doido vem para cumprir essa missão de apaziguar e juntar todo mundo.
Esse projeto vem em qual momento da sua criação e carreira? Num momento de muita maturidade emocional, de muita busca espiritual, de muita maturidade artística também. Nós não conseguiríamos realizar esse projeto há 12 ou 13 anos atrás. Eu vejo a Gaby Amarantos não só como uma artista, mas como uma plataforma que consegue dar vazão à criatividade de tantos outros artistas. Se você assistir o filme, vai ver desde a cena drag até as cenas das carretas, das aparelhagens, envolvidas nesse projeto. Todas essas pessoas tiveram a oportunidade de ter os seus pequenos solos realizados dentro desse grande megazord que é o Rock Doido, que fala dessa estética. É um lugar para compreender o quanto a nossa estética é incrível. Eu sei que eu sou uma artista brasileira e tenho muito orgulho de ser uma artista brasileira da Amazônia, que é fashionista desde que nasceu, mas se eu fosse uma artista europeia ou americana, com certeza já teria feito 15 capas de Vogue e Elle no Brasil. A gente está começando a curar a nossa síndrome de vira-lata, o que é muito bom. Eu sei que o que a gente faz é muito vanguardista, mas se fosse a Beyoncé ou a Lady Gaga fazendo era genial. Mas agora a gente começa a pensar que é algo muito incrível e genial o que está acontecendo em Belém. A gente não está pedindo para ninguém olhar para a gente, só estamos aqui fazendo. Se hoje a gente tem as tendências das pirotecnias no shows, das músicas curtinhas tocadas nas redes sociais, as aparelhagens já faziam isso 20 anos atrás. Desde artistas DJs que a gente vê que fazem muito sucesso no Brasil, que tem pirâmides, shows de drone e fogo, isso tudo foi bebido na fonte das aparelhagens, do nosso movimento cultural que é muito vanguardista, mas que só agora o Brasil está conseguindo compreender, mas é uma história que já está sendo contada há muito tempo. O movimento não se faz do dia para a noite. Todos os movimentos musicais grandes nasceram da persistência e da constância. Eu acho que aquela semente que foi plantada lá em 2012 com o Treme, ela agora é uma árvore frondosa que começa a dar frutos, que o Brasil prova e percebe que tem um sabor único.
Você fez uma participação em Garota do Momento, novela recente da Globo. Pretende fazer mais aparições como essa? Tem algum próximo projeto na TV engatilhado? Eu estou com um programa que está no ar no Multishow, o Karaoquem, um programa que acabou de estrear e que eu fiz junto com o Ed Gama. É um programa delicioso de karaokê, onde os artistas vão disfarçados e o público fã-clube descobre quem é. Eu estou no filme Makunaima XXI , essa produção audiovisual revisitada com Zahỳ Tentehar, que é uma diretora indígena e Felipe Bragança, que é um outro diretor também maravilhoso, co-dirigindo essa obra, trazendo para ela um ponto de vista das pessoas indígenas. Eu faço a Macu Mulher, a Macu Mulher Negra em um dos momentos. Esse filme deve ser lançado ano que vem, eu acredito. E muito foco agora no Rock Doido, nessa turnê, em trabalhar esse álbum, em colher os frutos. O Rock Doido para mim é uma colheita de frutos. Eu digo que se eu não estivesse mais neste planeta hoje, eu iria para outro plano muito satisfeita, porque essa era a obra que eu queria deixar de legado cultural. Eu ainda vou ficar muito tempo aqui, ainda vou fazer muito show, ainda tenho muita coisa para realizar, mas é isso que eu sinto com o Rock Doido, é uma obra de maturidade artística, de criatividade pulsante, que me dá muito orgulho, é de uma força coletiva que vai surpreender muita gente. Eu acho que eu vim ao mundo para fazer isso aqui.