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O Som e a Fúria

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‘Elis e Tom’: os bastidores tensos da gravação de uma obra-prima da MPB

Após quase cinquenta anos, cenas inéditas da criação do clássico são reveladas em um documentário excepcional

Por Felipe Branco Cruz Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 09h59 - Publicado em 14 set 2023, 19h00

Sem maquiagem e vestindo uma blusa que poderia ser confundida com pijama, Elis Regina se revela absolutamente à vontade. Aos 29 anos e já a maior cantora do Brasil, ela está sentada num estúdio diante de Tom Jobim, a quem mira com um misto de respeito e devoção. Elis escuta o maestro, então aos 47, dedilhar ao violão canções aleatórias. Uma delas é Caco Velho, clássico de Ary Barroso — mas tocada com uma levada de bossa nova, ritmo que Jobim ajudara a criar anos antes, ao lado de Vinicius de Moraes e João Gilberto. “Você gosta também de Villa-Lobos e Pixinguinha, né?”, pergunta Elis. Antes de responder, Tom dá uma tragada no cigarro e toma um gole de uísque. “São meus monstros sagrados. São as pessoas a quem copio”, diz. E emenda: “Só se pode copiar a quem se ama” (a própria frase, informa Jobim, ele roubou do compositor russo Stravinsky). A cena registrada pelo cineasta Roberto de Oliveira, à época com apenas 25 anos e empresário de Elis, resgata lances íntimos de um evento antológico: a gravação do álbum Elis & Tom, monumento incontornável da MPB, no ano de 1974, em Los Angeles.

Elis & Tom – LP

CLÁSSICO - Elis & Tom: o disco que juntou duas feras da MPB nasceu por acaso — e quase não foi concluído
CLÁSSICO - Elis & Tom: o disco que juntou duas feras da MPB nasceu por acaso — e quase não foi concluído (./.)

As imagens dos bastidores daquela histórica gravação ficaram guardadas por Oliveira por quase cinquenta anos e só agora são reveladas no excepcional documentário Elis e Tom: Só Tinha de Ser com Você, que estreia nos cinemas na quinta-feira 21. “Eu estava ali meio camuflado, meio invisível. A gente não podia fazer barulho e acabamos testemunhando a intimidade dos dois. Ninguém notava nossa presença”, disse Oliveira a VEJA (leia entrevista abaixo). O documentário é uma pérola rara: quis o acaso (e a mãozinha dos deuses) que Oliveira estivesse munido de sua câmera 45 milímetros nas gravações de um disco que promovia uma união de talentos até ali improvável. Se filmar esse tipo de bastidor já era algo sem precedentes na música nacional, fazê-lo com tal grau de transparência seria inviável hoje, num show­biz tão viciado no chamado “media training”. Das brigas aos momentos prosaicos de convivência, está tudo exposto em imagens que ganharam cores e definição assombrosas ao serem restauradas em alta resolução — o som foi remasterizado com auxílio de inteligência artificial.

Antonio Carlos Jobim: Uma biografia

O álbum Elis & Tom tem lugar assegurado entre as obras-primas da música brasileira graças a uma conjunção dos astros. As composições lapidares do maestro Jobim, como a inescapável Águas de Março, com suas harmonias e escalas desconcertantes, mas dotadas de singela naturalidade, encontraram a interpretação perfeita na voz de Elis — que chegou ao estúdio de Los Angeles como uma virtuose conhecida por seu gogó potente, e saiu convertida às sutilezas e contenções da bossa minimalista de Jobim. “Foi um monte de raio caindo no mesmo lugar”, resume João Marcello Bôscoli, filho mais velho de Elis. Olhando hoje, parece uma confluência tão desejável que um disco assim pode parecer ideia óbvia — mas o filme mostra que nem tanto: Elis & Tom surgiu quase do nada, e por pouco não morreu antes de ser gravado.

Elis: Uma biografia musical

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Partiu do próprio Oliveira, hoje com 75 anos, a iniciativa de juntar Elis e Tom. “Eu sabia que 1 mais 1 daria 20”, diz ele. No caso da cantora, o projeto era visto como uma forma de limpeza de imagem: Elis entrara em baixa depois de cantar na Olimpíada do Exército, dois anos antes, sendo acusada no meio cultural de ajudar o regime militar. Jobim, apesar do currículo glorioso, também sentia necessidade de trazer seu legado às novas gerações, e a parceria com Elis acenava com isso. Ao mesmo tempo, porém, havia desconfianças mútuas — e elas explodiram no estúdio da MGM em Los Angeles.

ATRITO - Aloysio de Oliveira, Mariano e Elis ao redor de Jobim: rota de colisão
ATRITO - Aloysio de Oliveira, Mariano e Elis ao redor de Jobim: rota de colisão (O2 Play/Divulgação)

As imagens revelam o clima tenso daqueles dezoito dias, entre fevereiro e março de 1974, em que eles ficaram enfurnados no local. Quem escuta hoje o álbum de harmonias tão pungentes e cristalinas não faz ideia do sufoco que foi para gravá-lo. Quando bambas da música são reunidos no mesmo lugar, o choque de egos é inevitável. Se a frieza logo deu lugar à sinergia entre Elis e Jobim, o mesmo não se pode dizer da relação do maestro com Cesar Camargo Mariano, marido da cantora e responsável pelos arranjos do disco. Tudo fora pensado para que Jobim fosse apenas um convidado especial de um disco concebido e tocado pela banda de Elis — mas é claro que o mago da bossa não topou esse papel coadjuvante. Ele enxergava com desdém o jeito “moderno” de tocar de Mariano, e zombava de seu piano elétrico. “Era uma verdadeira facada no meu peito”, diz Mariano no filme. A certa altura, Elis chegou a fazer as malas e anunciar que voltaria para o Brasil. Foi demovida por Roberto Menescal, executivo de sua gravadora, que voou do Brasil para os Estados Unidos para apagar o incêndio.

Elis e eu

Aos poucos, porém, o milagre das águas de março aconteceu. Com sua paixão e técnica genial, Jobim foi se apoderando naturalmente da ourivesaria das canções. Ao mesmo tempo, passou a respeitar as inovações propostas por Mariano. As imagens restauradas permitem notar detalhes do som ambiente do estúdio que dão ao espectador a sensação de ser uma testemunha privilegiada da gravação. A ideia anunciada por Oliveira aos artistas não era captar imagens, mas o áudio dos bastidores para um making of. Por isso, vemos Elis e Jobim desarmados, sem se preocupar com a presença da câmera. É pau, é pedra, é o fim do caminho — mas aquele foi só o começo para uma obra-prima da música.

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“Se eu fosse mais velho, teria medo”
Roberto de Oliveira, diretor de Elis e Tom, contou a VEJA a razão de só ter lançado o filme com registros raros após quase cinquenta anos.

BAÚ - Oliveira: plano de mostra imersiva com mais material inédito
BAÚ - Oliveira: plano de mostra imersiva com mais material inédito (@mostrasp/Instagram)

Por que guardou essas imagens por tanto tempo? Achei que, quanto mais tempo passasse, mais fácil seria contar a história. Elis e Tom já não estão mais aqui e o disco tem uma reputação internacional.

Como surgiu a ideia de juntar os dois em um disco? Foi uma ousadia. Eu era muito novo (tinha 25 anos). Se fosse mais velho e ajuizado, teria medo. A juventude tem suas vantagens.

Ainda tem material inédito guardado? Tenho vinte horas de áudio ambiente. Gravei tudo, independentemente se estavam tocando ou não. Vou fazer uma exposição imersiva com o material.

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Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2023, edição nº 2859

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